Foi nos Estados Unidos mas podia ter sido na Amadora

Nacional

Cresci num bairro operário da Amadora. O meu vizinho do lado era padeiro, o de baixo era mecânico e o do outro lado era carpinteiro. Nunca tive problemas com as autoridades. Quando era miúdo e passava pela rua que dava para a pastelaria Elvina, na Amadora, havia uma frase na parede que me intrigava: “Se a polícia nos protege, quem é nos protege da polícia? Mas aquilo não dizia nada à minha existência diária. Remetia-me antes para as realidades ficcionadas que vivia quando ficava a ler na marquise da minha avó. A repressão era algo que só existia nos livros do Zola ou do Emilio Salgari.

Nas ruas do meu bairro, não havia praticamente ciganos ou negros. A escola era o mundo onde todos nos cruzavamos. Eles chegavam dos seus guetos imersos em pobreza num país que aprendia a usar a mão-de-obra dos pais dos meus colegas a um preço mais barato. Eu não sabia nada de violência policial porque as autoridades só batiam nos meus vizinhos à porta das fábricas quando protestavam por melhores salários. A primeira vez que levei uma bastonada era praticamente adulto e todas as vezes em que fui identificado ou detido havia uma razão política por trás. Para os meus amigos ciganos e negros, bastava existirem.

Em 2015, o meu amigo LBC foi sequestrado pela polícia com outros jovens da Cova da Moura e espancado durante horas. Vários agentes foram condenados numa sentença inédita sem que ainda assim tenham sido despedidos da PSP. No ano passado, quando cheguei a casa de Claudia Simões para a entrevistar vi nela os olhos aterrados de George Floyd, minutos antes de ter sido assassinado por um polícia em Minneapolis. As imagens desta mulher da Amadora no chão enquanto um agente lhe faz um mata-leão são a prova de que para alguns a simples existência chega para serem alvo da violência policial. À frente da sua filha, foi detida de forma violenta antes de ser levada num carro-patrulha onde a esmurraram para depois dizerem aos bombeiros que tinha sido uma queda.

Há poucos dias, a jornalista Joana Gorjão Henriques deu a conhecer um estudo da Universidade de Coimbra que mostra que em dez anos nenhum polícia foi condenado por racismo. Há quem tenha a coragem, e bem, de dizer que se trata de violência estrutural quando se trata dos Estados Unidos mas que meta água na fervura quando falamos de Portugal. As mãos negras que nos constroem hospitais com baixos salários são bisnetas das mãos negras que viveram a barbárie da escravatura. As mulheres destes guetos são as que enchem os primeiros autocarros de madrugada para limparem escritórios.

É um facto que a polícia precisa de melhores condições dignas. Uma vez, detido numa esquadra de Lisboa, deu para ouvir o lamento de um agente sobre o estado das instalações. Suponho que seja sempre mais fácil conversar com um polícia quando se é branco e não se está num piquete de greve. Há falta de muitas coisas. Sobretudo, de formação. A extrema-direita cresce nas forças policiais porque apresenta um discurso que dá voz à sua revolta e porque aposta na construção de um inimigo fictício. Enquanto André Ventura se finge porta-voz das reivindicações da polícia, e depois faz o contrário na Assembleia da República, há quem não perceba dentro das forças de segurança que é ao lado dos trabalhadores, portugueses e imigrantes, independentemente da cor, que se constrói uma paz com justiça social.

O problema é que não se pode esperar que a formação resolva aquilo que os sucessivos governos nunca quiseram resolver. A polícia é a tropa de choque dos interesses dos grandes grupos económicos e financeiros. O racismo não é um filme do Spike Lee que só acontece quando estamos sentados no cinema. Há um apartheid e, como em todos os apartheids, se não o sentes na pele é porque não vives em guetos permanentemente assediados pela polícia. É porque a tua cor da pele te permite existir sem teres de acelerar o passo de cada vez que vês um polícia. É porque nunca tiveste de te questionar: a polícia protege-nos mas quem nos protege da polícia? Aconteceu nos Estados Unidos mas podia ter sido na Amadora.

11 Comments

  • Jose

    1 Junho, 2020 às

    Toda esta histeria sempre ignora que tem de haver uma qualquer regra comportamental do cidadão para com o agente policial.
    O polícia lida com violentos, reage a sinais de violência, e está obrigado a não ignorar esses sinais, sejam físicos ou verbais.

    A demonização da polícia, alarma os cidadãos e altera-lhes o comportamento perante a polícia. As histórias mal contadas só promovem mais incidentes.

    E a tónica racista – em que comportamentos têm mais relevância que a cor da pele – é aditivo abusivamente exaltado.

    • Nunes

      1 Junho, 2020 às

      É aditivo abusivamente exaltado? És capaz de repetir isso?

      Infelizmente, já revelaste o teu racismo ao escrever o seguinte comentário:

      ««Não lhe dou é a importância dos que tudo reduzem a que estando o país em guerra em três frentes se sentiam no direto de servir quem no campo de batalha era nosso inimigo.»

      Agora vens com a ideia que tudo isto que está acontecer nos EUA é uma histeria… que os polícias norte-americanos não são violentos… nada disso.

      «… que tem de haver uma qualquer regra comportamental do cidadão para com o agente policial»

      Por favor, não colabores com mais confusão para estas páginas.

      O que escreves em outras páginas e aqui revelam alguém completamente apanhado do cérebro e que ainda por cima se toma a sério.

      Por último, «As histórias mal contadas só promovem mais incidentes.» Sem dúvida que sim. Esqueceste de mencionar que, mais uma vez, te referes a ti. Tão típico teu.

  • Viajar Viajando

    31 Maio, 2020 às

    Este comentário foi removido pelo autor.

  • Nunes

    29 Maio, 2020 às

    Tal como o crime contra Eric Garner, a morte de George Floyd é tão brutal e semelhante à violência imposta por polícias contra Rodney King.

    O tratamento de choque imposto a Rodney King foi filmado e mostrou a violência e cobardia de polícias norte-americanos. A filmagem desta violência gerou uma grande onda de revolta que acabou quase em guerra-civil. O exército foi enviado a Los Angeles. 52 civis foram mortos.

    O que se passa hoje em Memphis, Minneapolis e Los Angeles não é novo. O próprio caso de George Floyd recorda outros casos tão selvagens e insultuosos como foi aquilo que aconteceu a Will Brown, em Omaha no ano de 1919.

    São dignos caso de violência e racismo nos Estado Unidos da América.

    Em Portugal, existe algo semelhante nos bairros pobres de africanos portugueses. O confronto com a polícia é desigual e também existe racismo, quer queiramos ou não.

    Alguns podem até não estar de acordo com esta ou outra posição, mas no final se pusermos na balança os casos e a violência, é evidente que aqueles que estão melhor armados são aqueles que têm mais poder e cometem mais abusos.

    E por falar em racismo, alguém se recorda daquilo que fizemos durante a guerra colonial? O que fizemos em Mueda, Wiryamu e Pidgiguiti?

    Com quem se lutava precisamente? Como era conhecido o inimigo na gíria militar?

  • jose gonçalves

    29 Maio, 2020 às

    Concordo e discordo do que diz:
    O caso da senhora Cláudia Simões todos vimos o vídeo na integra já que O Vídeo que foi apresentado de inicio apenas mostrava uma parte,a que interessava à senhora Cláudia Simões até que foi publicado na INTEGRA onde até pessoas africanas a acusavam, a senhora não possuía o passe da filha, LOGO não pode andar nos transportes Públicos sem ele.
    Lamento mas são as regras, aplicam-se a todos os cidadão deste pais. Esqueceu-se de mencionar na sua peça que o motorista que reportou o caso foi agredido violentamente quando estava a fazer o trabalho que compete, é motorista e fiscal.
    Nunca entendi porque razão trazem sempre o ventura para estas publicações, é dar importância a quem não a possui, está na AR faz barulho, os deputados mal lhe ligam, quando respondem às barbaridades que ele diz , Ventura fica calado, nem se defende.

    O Senhor na sua peça aqui escrita fala da Violência Policial, sem duvida, nem vamos tapar o sol com a Peneira, e a violência contra a Policia? Já a viu? Viu no dia em que escreveu esta peça o que se passou em Cascais??? Vê-se bem nos vídeos de vídeo-vigilância quem comete o crime, um deles armado de arma branca e no final acabam por agredir um policia. E os casos de Policia que durante o confinamento foram chamados para terminar com festas e foram recebidos a tiro e com pedras, ou em bairros onde nem podem entrar???
    Problemas existem,e devem ser resolvidos

    • Unknown

      29 Maio, 2020 às

      Grande comentário. Concordo que se exponha a outra face da moeda. Independentemente da cor da pele não somos todos mais, não somos todos bons. Hai gente que não presta e o sentimento de impunidade que reina em Portugal permite-lhes os comportamentos que me colocam a mim e a todos nós em risco. É necessária mais formação nas forças de segurança e nos juízes que aplicam penas demasiado leves dando origem ao sentimento de impunidade.

    • mp

      1 Junho, 2020 às

      E enquanto se expõe a outra face da moeda, tapa-se os olhos ao que só alguns sofrem simplesmente pela cor da sua pele e segue-se a vida. Pelos comentários feitos aqui suponho que sejam pessoas cuja pele não define a forma como são vistos pela sociedade, incluindo a polícia que deviam proteger os mais desfavorecidos acima de tudo. Deixemo-nos de preciosismos sobre quantos pontos de culpa é que deviam ter sido atribuídos à senhora do autocarro ou a todos os jovens sem estrutura familiar que prejudicam policias bem intencionados. Se o crime acontece é por falta de apoio e por desespero de quem vive estas realidades todos os dias e tem de saber defender-se 24h de todo o tipo de perigos e pelos vistos também da polícia. Eu sendo de pele branca não imagino o que será ter de fazer a minha vida, cuidar da minha família, trabalhar, pôr comida na mesa e ainda estar constantemente a olhar por cima do ombro para o caso de me incriminarem de algo porque a minha pele é parecida com alguém que fez alguma asneira ou senão porque devo "estar com ar de quem vai preparar alguma".
      Pessoas de pele branca responsabilizemo-nos pela nossa indiferença e queiramos fazer melhor para que a existência de todos neste mundo seja válida e tenha valor!

  • Matilde Tobias

    29 Maio, 2020 às

    É verdade. Acontece em muitos sítios e cá também. Também me lembro do caso de um brasileiro que foi posto inconsciente por um GNR à paisana numa repartição das finanças do Montijo. Revoltante.

    • jose gonçalves

      29 Maio, 2020 às

      São casos diferentes
      Apesar da conduta do GNR, ele foi colocado inconsciente e o GNR sabia o que estava a fazer. Pelo que já estiver a ler, o "policia" americano aplicou uma técnica que nem faz parte dos treinos policiais e pelos vistos está envolvido em vários casos. No caso do Montijo o cidadão brasileiro poderia ter moderado a sua postura, várias pessoas, e agora cabe a cada um dizer que quem falou contra o cidadão brasileiro é racista ou seja lá o que for, que este cidadão já tinha provocado alguns desacatos.

    • Matilde Tobias

      30 Maio, 2020 às

      O GNR sabia tanto o que estava a fazer como as regras da GNR. https://expresso.pt/sociedade/2017-05-12-GNR-suspeito-de-abuso-de-poder-1 Aquilo que vossa excelência parece não querer ver ou abordar é a impunidade de alguns agentes da autoridade, não por utilizarem técnicas que não fazem parte dos 'treinos', mas por abusarem da autoridade que a sociedade lhes conferiu. Ou seja, o Sr. está a dizer que se um polícia dispara sobre uma pessoa quando nada na situação o justifica, o problema está no tipo de arma utilizado e não no disparo em si. Percebe o quão ridículo é o que está a sugerir? Se não, coloque-se na posição da vítima. Talvez ajude.

  • Bitó

    28 Maio, 2020 às

    É isso mesmo.

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