Ele está no meio de nós

Nacional

Quando Gabriel Garcia Marquez decidiu sentenciar o destino de Santiago Nasar, logo na primeira frase da Crónica de Uma Morte Anunciada, em 1981, estaria longe de pensar que aquele relato jornalístico da sorte que os irmãos Pedro e Pablo destinaram ao defunto é um espelho dos dias que vivemos. Naquela vila, de uma forma ou de outra, todos sabiam que Santiago Nasar estava já morto antes de o estar fisicamente, mas ninguém foi capaz de impedir as facadas que o levaram para o reino dos céus, mesmo tendo os irmãos de Angela feito tudo para que alguém os travasse, anunciando o seu propósito. Ninguém os levou muito a sério.

Em 2020, a história de Santiago Nasar é a personificação do racismo. Sempre andou por cá mais ou menos escondido, depois dos anos 90, quando a cultura skinhead – bonehead, para não ofender os verdadeiros skins – estava no auge e originou a morte de Alcindo Monteiro. Desta morte nós soubemos. Não teremos sabido de espancamentos, de agressões, facadas, tiros, ameaças a negros, militantes de esquerda e anarquistas. Para quem frequentava o Fórum Nacional e o mIRC, nos primórdios da Internet, as histórias estavam todas lá.

Reabilitação do fascismo

Os anos de Cavaco como primeiro-ministro, entre 1985 e 1995, ajudaram a reabilitar algumas figuras do fascismo, de que são exemplo como as pensões do Estado atribuídas aos PIDEs António Augusto Bernardo e Óscar Cardoso, mas recusada a Salgueiro Maia. Criou-se desde então uma espécie de cortina de reabilitação de fascistas que foi medrando e crescendo ao longo dos anos, agora com cabeças menos rapadas mas com bastante mais influência. José Hermano Saraiva, Veiga Simão, Adriano Moreira, Jaime Nogueira Pinto e muitos outros. Foram entrando de fininho pelo poder e pelos media, devidamente reabilitados sem nunca pagarem pelos crimes que cometeram. Respeitáveis figuras que aprendemos a ver no poder, com mais ou menos sombra, sempre chamados quando o assunto lhes convém. Há uns dias, na Antena 1, Jaime Nogueira Pinto ajudava os jovens com exame nacional de História criticando o comportamento dos comunistas alemães antes da subida de Hitler ao poder, com o devido agradecimento de Maria Flor Pedroso.

Securitarismo pós-11 de Setembro

O mundo mudou depois dos ataques de 11 de Setembro, nos EUA. A esmagadora dos países adotou políticas securitárias que serviram para retirar direitos civis e aumentar o poder da ordem estabelecida. Detenções sem acusação formada, crimes de delito de opinião por, supostamente, colocarem em causa a segurança nacional. Houve um pouco de tudo. Há países que continuam ainda com estados de exceção. O medo da diferença aumentou ainda mais e acentuou-se, por todo o Mundo, o crescimento das forças de extrema-direita. As respostas fáceis para problemas complexos sempre venderam bem.

Paraíso à beira mar

O fascismo e os seus símbolos nunca foram extirpados depois da Revolução. E o racismo é filho dele. A expressão do “país de brandos costumes” perdura ainda hoje, o mito dos colonizadores amigos, o esconder do que foi a brutalidade do regime português em África, no Brasil, os milhares e milhares de escravos, os massacres durante a guerra para onde foi arrastada uma geração de esfomeados na metrópole para manter um império que estava mais perdido do que a perna da cadeira, abençoada. Seguiu-se o PREC e o perigo comunista, mais do que desmentido, mas que continua a preencher o imaginário da direita.

Foi com este panorama, muito geral, para não se tornar ainda mais aborrecido, que a extrema-direita foi ganhando terreno no espaço mediático e político, também com contributos do descrédito que PS, PSD e CDS foram colando à atividade política. Sócrates e os seus esquemas, Passos e Portas e os esquemas que já são história. O segundo foi prontamente reabilitado pela TVI para fazer “comentário político”. O primeiro anda por aí. A legitimação de discursos xenófobos, racistas e discriminatórios ganhou palco e chegou onde queria, ao eleger um deputado. Com um fascista no Parlamento, está legitimado o que o poder e os media foram promovendo. Trouxe com ele uma parte do que sobrou dos financiadores da extrema-direita do pós-25 de Abril, mas também permitiu a muitos fascistas saírem da toca. A erosão do CDS e a migração do PSD deixa isso claro.

Bruno Candé

Bruno Candé foi assassinado na rua, à luz do dia, por uma pessoa que lhe deu os tiros que quis com uma arma ilegal roubada, ao que parece, às forças de segurança. As últimas palavras que terá ouvido, de acordo com testemunhas que falaram para todos os Órgãos de Comunicação Social mas que a PSP não conseguiu encontrar, foram “preto, vai para a tua terra”. A terra dele é Lisboa. Antes disso, de acordo com pessoas que, mais uma vez, falaram com vários OCS, já o tinha mandado para a sanzala, que ia violar a mãe dele como tinha feito em África, que ia matá-lo com armas que tinha do Ultramar. Bruno Candé tinha 39 anos, três filhos. O assassino, para já, não tem nome. Tem alguma idade, por isso, o mais provável é ser dado como inimputável. Veremos em julgamento.

Ainda assim, há algumas coisas que não precisam de esperar pelo julgamento, porque as sentenças, numa sociedade capitalista, não são mais do que a interpretação de leis feitas pela classe dominante à sua medida. O assassino não é alegado, é mesmo assassino. É racista, a menos que se considere normal dizer tudo o que ele disse. E já vimos que sim, que há pessoas para quem é normal insultar desta forma. O caso de Marega foi evidente, muita gente normalizou os insultos de que foi vítima: para eles, não tem mal chamar macaco a um negro, faz parte do futebol. Não sei o que sairá, judicialmente, deste processo. Socialmente, tem de significar o despertar de consciências e a perceção de que não estamos todos do mesmo lado. Que a formalidade da democracia liberal nunca foi suficiente para fazer frente ao avanço do fascismo e das suas formas – pelo contrário, as democracias do pós-II Guerra sempre viveram bem com o fascismo.

Retomando, o racismo é o nosso Santiago Nasar. Apesar de todos os sinais, sempre desvalorizados pela ideologia dominante, o sistema foi deixando andar e abrindo portas, aqui e ali, para uma outra ideia de extrema-direita mascarada de anti-politicamente correto, seja isso o que for. O racismo existe em Portugal, está no meio de nós, como existe em todas as sociedades capitalistas, porque lhes é inerente. Durante demasiado tempo escolhemos não ver, enquanto sociedade. Enquanto não havia telemóveis que documentassem com imagens o que as vítimas verbalizavam, porque a palavra de um pobre vale menos; de um negro pobre, vale duas vezes menos. O neoliberalismo, a forma mais selvagem de capitalismo, consegue a proeza de fazer um branco pobre identificar-se mais com um milionário do que com o negro pobre que trabalha ao seu lado. A luta antirracista é luta de classes e é na vanguarda desta luta que os representantes de todos explorados têm de estar. Santiago Nasar está morto.

9 Comments

  • Maria

    1 Agosto, 2020 às

    Amanhã vou ver o maluco do Jose a lamber os pés do André Ventura.

  • Jose

    29 Julho, 2020 às

    Continua a ler, Nunes.
    Ainda vais aprendendo qualquer coisinha.

    • Nunes

      30 Julho, 2020 às

      Felizmente, não se percebe nada do que escreves.

      O comentário que escreveste aqui mostra bem a confusão que vai nessa cabeça. Precisas de um bom médico da cabeça.

    • Nunes

      30 Julho, 2020 às

      Já agora, não foste tu que escreveste esta frase no blog «Ladrões de Bicicletas»?

      (…)

      "Não duvido que ( os pides) trinchassem um treteiro badalhoco de vez em quando, que a higiene pública também é defesa do Estado"

      (…)

      O mais ridículo em ti é a forma como vens aqui comiserar e pedir atenção, tentando passar por progressista e radical.

      Dentro de ti está o racista que viveu em Portugal em tempos de ditadura.

    • Jose

      30 Julho, 2020 às

      Nunes, diz-me o que não percebes que tento explicar devagarinho, tipo tele-escola.

    • Nunes

      31 Julho, 2020 às

      E ele continua a dar com a «tele-escola». Caramba que é estúpido e burro!
      Sai ao PIDE que teve na família (provavelmente o pai). Normalmente, eram todos analfabetos.

  • Jose

    29 Julho, 2020 às

    Um tipo é manco, chamar-lhe Manco não é racista.
    Um tipo é preto, chamar-lhe Preto é racismo do pior!

    O assassino do Candé é um achado providencial!
    Pouco a pouco somam-se-lhe todos os atributos da catarse anti-colonialista e anti-racista e, lá chegaremos, determinar-se-á ser um fascista encartado – se fora informador da PIDE far-se-ia o pleno!

    A paranoia do racismo vai trazer muitos votos ao Chega.
    Quanto mais os idiotas de esquerda se esforcem por dizer ser falso o sonho colonial português, os muitos que com sinceridade o sonharam vão-lhes cobrar a denúncia.

    A utilidade deste processo é um mistério:
    Onde estão os problemas rácicos em Portugal?
    Onde estão os dramas coloniais comparáveis à miséria, às injustiças, às guerras e à fome que empesta a maioria das ex-colónias?
    A conferência de Berlim de 1884-5 impediu que tribos viessem a constituir nações?
    O colonialismo evitou que os africanos viessem a inventar a máquina a vapor algures no século XXII?

    Sobra o serviço permanente aos mantras ideológicos…

    • Nunes

      29 Julho, 2020 às

      Porque não revês os textos que escreveste em «Ladrões de Bicicletas» e que confirmam não só o teu fascismo disfarçado, como também o teu racismo?

      Por exemplo, esta tua citação:

      «O 25A opôs-se ao que vinha sendo uma acção política medíocre, hesitante, incapaz de anunciar um futuro para o país.
      Foi uma festa porque se celebrou um futuro que se adivinhava, não porque se libertava dos horrores que propagandeiam os que por esse meio buscam legitimar-se pelo seu passado e não pelas suas acções no presente.
      Agora, que há anos se vive numa confrangedora mediocridade que sempre anuncia um futuro de ameaças, que paralelo existe entre a festa de 1974 e a mascarada de 2020?
      Nenhum!
      Onde havia festa há melancolia, onde havia fé há descrença, onde se adivinhava grandeza há mediocridade em dose que então seria inimaginável.»

      E por falar em racismo? Que tal esta tua citação:

      «Não lhe dou é a importância dos que tudo reduzem a que estando o país em guerra em três frentes se sentiam no direto de servir quem no campo de batalha era nosso inimigo.»

      Revê os textos e pergunta à tua estupidez porque ainda vens aqui. Fazer o quê? Confirmar o quê?

    • Nunes

      29 Julho, 2020 às

      Ainda mais uma citação de um comentário do mesmo «Jose» no blog «Ladrões de Bicicletas» no dia 7 de Junho deste ano:

      «É já uma atenuação em relação ao corretês histérico para quem um criminoso preto é mais coitadinho que um criminoso branco.
      Mas não é tudo:
      – Há uma herança cultural que pressupõe uma menorização do negro; estranhamente a pretensa élite progressista sempre omite que todos somos negros de origem, alguns descolorados por uma ou mais idades do gelo. E no caso português, o que por aí anda de ascendências negras desde o séc. XV, é bué!
      – Classe social é uma aproximação, mas convivência social talvez fosse mais abrangente pois envolve critério mais alargado, com variáveis que não cabem na caricatura marxista da sociedade, como sejam: educação, ética, e a estética que, como em qualquer arte visual, requer proximidade.
      – Quanto à supremacia branca, ela é – de toda a evidência – promovida pelos grunhos dentre os brancos; mas a praxis marxista prefere apresentá-los como agentes do capitalismo, ainda que nem os pretos percebam, ainda que os pretos que acreditam se sintam submergidos por forças esmagadoras.
      Mas a herança soviética oblige.»

      Repare-se no modo escreve: «criminoso preto».

      O Jose ainda vem do tempo colonial ou de uma família boçal? Venha o diabo e escolha.

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