Não há neutralidade no espaço público

Nacional

Desde há séculos que a luta pelo controlo do espaço público é, também, um aspeto da luta de classes. O controlo do espaço é, mesmo entre os animais, essencial para a sua sobrevivência. Uma parte substancial dos animais é territorial, controla uma determinada área onde impõe a sua lei, ainda que possam várias espécies diferentes de animais controlar o mesmo espaço, por exemplo, desde que os interesses de uns não colidam com o interesse de outros. De outro modo, teremos uma luta pelo controlo desse território. No caso dos seres humanos, a luta de classes é inevitável, real, uma vez que há entre elas interesses antagónicos e inconciliáveis.

Formas de condicionamento do espaço

O espaço público é um dos campos da luta de classes. Não é por acaso que, no lado oposto das avenidas largas, luminosas, com árvores e jardins, temos becos escuros, onde o lixo se acumula e onde a fraca iluminação ajuda a esconder uma parte do espaço que a classe dominante não quer sequer ver, como forma de se abstrair da sua existência. Não é por coincidência que as grandes cidades têm no centro as zonas mais valiosas e, à medida que nos aproximamos das periferias, o espaço vai perdendo valor, vai sendo cada vez menos agradável e/ou bem tratado, com menos estruturas e serviços que sirvam a comunidade, dificultando assim o usufruto desse espaço pelas camadas populares mais pobres.

Quanto menos apelativos forem os espaços, menos disputa haverá por eles, porque nem as camadas dominantes, que os criam, nem as camadas dominadas, que vivem neles, os querem como seus ou sequer gastar algum do seu tempo livre neles. Com espaços públicos degradados atomiza-se o indivíduo perante a sociedade que o rodeia. A partilha de experiências de vida, a consciência de classe que se adquire também através do sentimento de pertença a um grupo, onde nos apercebemos de caminhos semelhantes que se repetem de indivíduo para indivíduo. O indivíduo passa, então, a viver sozinho rodeado de gente como ele, que é, no fundo, uma parte dele, sem que possa ter noção disso, porque não há uma partilha do espaço comum.

As muralhas medievais, por exemplo, tinham como função primeira a defesa militar do espaço comum, criando, através disso, um sentimento de pertença e de comunidade num espaço ocupado por diferentes classes entre humanos iguais. Nos dias de hoje, uma vez que já não temos cidades muradas e a nossa identificação enquanto comunidade faz-se de forma mais abrangente, os exploradores recorreram a outras técnicas para dividir o espaço público e torná-lo, sempre que possível, privado.

Passa-se isto com a explosão de construções de condomínios fechados ao longo das últimas três décadas, pelo menos na zona onde vivo. Nesses espaços existem, para além de espaços comuns de excelentes condições, jardins, ginásios, piscinas, parques infantis, espaços para desportos coletivos e convívio. Desta forma, as classes com maiores rendimentos mantêm a sua vida afastada do confronto classista com os mais pobres. Muitas vezes, nem sequer os veem. Ninguém se vai pôr em bicos de pés para observar, de dentro para fora, a vida para lá do luxo. Do outro lado, cada vez menos os explorados têm força para se pendurarem no muro e ver o que se esconde para lá das muralhas, uma espécie de cidade proibida dentro da cidade.

Por estes motivos e outros que não cabem nestas linhas, a classe trabalhadora corre o risco de perder o controlo do espaço público geral, ficando confinada às zonas envolventes daquele que é, no sistema político e económico atual, o seu lugar: Do outro lado do rio, sem vista das janelas que não seja para outras janelas como a sua. É por isso urgente que os trabalhadores e a suas organizações representativas continuem a utilizar o espaço público como campo de batalha, cumprindo as regras de segurança em tempos de pandemia, mas deixando claro que não vamos continuar a recuar.

O espaço virtual

Se e inegável que a Covid-19 trouxe novos e complexos desafios e exigências aos trabalhadores e ao povo, não é menos verdade que há aspetos da nossa vida coletiva que têm de ser mantidos, não só nas áreas da Saúde ou da Segurança Interna. A defesa dos direitos dos trabalhadores, estes incluídos, faz-se através de vários canais e plataformas. Mas não há, para já, método que substitua os trabalhadores nas ruas em defesa dos seus direitos. Poderão alguns sempre argumentar que há métodos online que substituem a mobilização dos trabalhadores, algo do género do que estaria na cabeça de alguns membros da CGTP-IN, afetos ao Bloco de Esquerda, quando disseram que era preciso inovar e optar por métodos virtuais na comemoração do 1 de Maio.

Se é verdade que a inovação é inerente aos seres humanos, particularmente aos trabalhadores, não é menos verdade que continua a ser no espaço físico que se dão os embates entre classes. Se assim não fosse, a direita mais bafienta não demoraria a aplaudir a postura dos bloquistas, de Marques Mendes a Júdice. É evidente que as redes sociais desempenham um papel importante nos dias de hoje. Se alguém está a ler este texto é porque o Blogger, plataforma da Google, assim o permite, tendo cá chegado através do Instagram, do Whatsapp, do Twitter, do Facebook ou de qualquer outra rede. Mas há uma questão essencial que o Bloco não considerou na postura que assumiu: as redes sociais não são um espaço público, são um espaço privado. E, sendo um espaço privado, quem está nele sujeita-se às regras que são ditadas pelos seus proprietários. Não é difícil verificar que temos aqui um conflito entre interesses: os proprietários das plataformas, que representam os seus acionistas, e a esmagadora maioria dos utilizadores. Os proprietários, que recolhem e comercializam os nossos dados sem percebermos bem quais e como, mas acedemos a tudo; e nós, que temos a ilusão de que as redes são um espaço democrático; melhor ainda, um espaço neutro no meio da luta de classes. Um largo no meio da cidade. Uma espécie de chão de uma qualquer praça sobre o qual estão explorados e exploradores frente a frente. Nada mais falso e enganador.

Para o mais atento que tenha conseguido a tarefa hercúlea de ler até aqui, surge então um ponto incoerente: lá atrás, o indivíduo está atomizado, isolado do espaço público que está feito de forma a não atraí-lo; agora, temos todos redes sociais, pelo que estamos todos juntos. Nem por isso. Estamos mais próximos mas continuamos atomizados. Se a nossa atuação enquanto agentes da mudança se reduzir às redes, aos likes, às petições, se as ruas não forem tomadas pelos explorados, então, os capitalistas podem dormir descansados. Continuaremos a pagar o serviço de Internet a empresas privadas que recorrem, de forma vergonhosa, a trabalhadores precários para nos fornecerem o serviço que, acham alguns, acabará por libertar esses mesmos trabalhadores explorados. E aqui temos um círculo que urge romper, mas que o BE não percebeu.

As redes são, também elas, a promoção das classes dominantes. Dentro do negócio que são as redes, nasceram negócios através das redes, que vivem de vender outros negócios com presença nas redes. Vendem um estilo de vida que não é acessível à esmagadora maioria da população, que não é sequer o seu estilo de vida. No fundo, todos nós temos agora uma pequena televisão à nossa frente, como os nossos pais e avós no século XX. A diferença é que, hoje, tudo o que vemos é direcionado a nós, numa espécie de relação um para um entre nós e as redes. Ao contrário das televisões e da rádio, na internet vemos o que escolhemos ver, quando ver e a publicidade que vemos sem querer.

Daí que considerar que inovar passa apenas por usar as redes – que é diferente de usar a World Wide Web -, é ingénuo, na melhor das hipóteses, e mais uma cedência ao neoliberalismo, na pior. É nas ruas, em frente às empresas, em frente aos ministérios, que se dá a grande luta de classes, motor da transformação social que virá. O espaço público, quando deixado livre por um leão moribundo, é tomado pelas hienas e abutres. E reganhar esse espaço custar-nos-á o dobro do esforço.

11 Comments

  • Refer&ncia

    21 Julho, 2020 às

    Só não compreendo essa necessidade de afunilar um aspecto global da luta de classes (a apropriação privada dos espaços públicos físico e cibernético) apresentando-a como uma contenda com "O be". A questão transcende em muito o "ativismo laboral" dos "meus" camaradas broquistas 😉

    • Ricardo M Santos

      23 Julho, 2020 às

      Não está nada afunilado. Foi o meu ponto de partida.

    • Nunes

      24 Julho, 2020 às

      Excelente o texto. É preciso continuar a escrever.
      Se entretanto este «Jose» aparecer, eu dou-lhe com o meu «Xeltox».
      Abraço

  • slywalker

    21 Julho, 2020 às

    👏👏👏

  • Ricardo M Santos

    20 Julho, 2020 às

    Ó zé, o teu mal é sono.

  • Jose

    20 Julho, 2020 às

    « O controlo do espaço é, mesmo entre os animais, essencial para a sua sobrevivência»- assim nasceu a propriedade.
    Quanto ao mais, seguramente são as ideias que conduzem qualquer luta, importa pouco saber onde ela tenha lugar.
    Quando o culto do espaço físico leva a cenas de escassa mobilização, ajuntamentos de reformados a lutarem por direitos de trabalho que não exercem, saem as ideias enfraquecidas pelo formalismo da sua expressão.

    • Nunes

      20 Julho, 2020 às

      Alguém percebeu a confusão deste texto ou pensamento?
      Todavia, não é para perceber ou entender. ´
      É o burro «Jose» na sua confusão máxima.
      O burro que escreve «tele-escola» em vez de «telescola».

    • Jose

      20 Julho, 2020 às

      Quando deres sinal de ter compreendido – no mínimo alinhando palavras em frase que se aproxime de uma opinião – é que haverá surpresa.

    • Nunes

      20 Julho, 2020 às

      Não vás ao médico não.

  • Maria João Brito de Sousa

    20 Julho, 2020 às

    Concordo! Ó se concordo!

  • Francisco

    20 Julho, 2020 às

    Aplaudo, de pé!

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