Rita, põe-te em guarda

Nacional

Ao ler as partes que a Blitz cita do lamento de Rita apenas se evidencia o que é óbvio (é mais do que óbvio) no meio do entretenimento português. Seria meio cultural se existisse uma política cultural, algum eixo, alguma estrutura de criação e fruição que garantisse este direito fundamental a todos. Mas não, é sempre a lógica da festa, do amigo, do amigão que arranja o concerto ao amigão, que conhece um tipo com que estudou na faculdade que é produtor e amigo do presidente da câmara, do namorado que tem uma banda e são muito amigos do tipo da rádio que já os passou (e que não costumar passar ninguém), que por sua vez janta todas as semanas com o gajo da discoteca que é amicissímo e até já namorou com a miúda do programa da televisão cujo namorado novo é das relações pessoais do gabinete da ministra já desde que ela era vereadora.

É assim. É assim com os “concursos”, é assim com os ajuste directos, é assim com os espaços nas cidades, é assim com os trabalhos que se arranjam ou não, é assim que se vão mexendo. Mas a Rita, no seu choro desconsolado e triste porque viu insultos, porque não pôde ajudar, viu neste milhão uma ajudazinha de, quem sabe, 3 euros a quem está pior do que ela e agora está inconsolável porque nem para ela, nem para eles, nem para ninguém.

À Rita, é-lhe absolutamente indiferente que esteja em causa dinheiro público, proveniente dos rendimentos de muitos trabalhadores, também eles hoje a pagar a pandemia. É-lhe indiferente que o governo não cumpra minimamente os princípios da legalidade, transparência, igualdade a que está legalmente obrigado e pura e simplesmente tenha dito, convidando não se sabe como, individualmente, não se sabe exactamente quem, tomem lá.

À Rita, é-lhe indiferente que a Ministra da Cultura ache que arte se resume a música.

À Rita, não interessa que não haja rigorosamente nenhum procedimento de contratação, exigido hoje em dia até para parafusos, nem nenhuma sindicância e até acha que os concursos da DGartes são iguais: concursos com regras (questionáveis e injustas, mas conhecidas e com procedimentos para serem contestadas), com um júri público cujas decisões são públicas, têm que ser fundamentadas e podem ser contestadas. E o facto de o serem, é, para a Rita, mais um síndrome do queixinhas porque seguramente quem discorda só pode ser queixinhas e do contra.

Como foram mais de 20 mil pessoas em menos de 24 horas: queixinhas, do contra, gente que não está bem consigo mesma, porque se insurgiram e ao que parece não podem. Para a Rita, discordar, insurgir-se contra uma evidente injustiça, exigir políticas públicas, exigir transparência, justiça e uma outra distribuição dos dinheiros públicos – de forma transparente e equitativa – é feio e é chato.

Mas acaba bem com isto das almas precárias. Porque a Rita se calhar não sabe que a precariedade não é exclusiva da sua área. Somos milhares. Mas organizamo-nos, nos nossos sindicatos de classe. E as artes têm um sindicato de classe.

Mas isto deve ser irrelevante para a Rita, porque chato é que agora nem para ela nem para ninguém. O velhinho mais vale teres este trabalho do que não teres nenhum. E nós sabemos a quem serve esta frase.

É pelas Ritas e por textos moralizadores destes que hoje ressoam na minha cabeça as palavras de Sérgio Godinho: Rita… põe-te em guarda.

https://blitz.pt/principal/update/2020-04-10-Rita-Redshoes-Fui-das-pessoas-que-aceitaram-ir-ao-TV-Fest-podem-crucificar-me.-Agora-nem-1-euro-nem-1-milhao.-Para-ninguem?fbclid=IwAR32aYYoYvOaDO2OSt6BXvXvnLWLM3RhV3eCkBlZzkO9RI4lOyM6HS_Ed8M

3 Comments

  • miololindo

    12 Abril, 2020 às

    Apesar de tudo, e toda a legitimidade da contestação, é preciso não associar à partida estas acções a manipulações premeditadas, acredito mais que a razão é a ignorância, onde me incluo, claro. E sinto que estamos num momento ótimo para perceber melhor o que é a vida e o trabalho uns dos outros, pela falta que nos fazem os seus ofícios. E as realidades de todas as classes, porque toda a gente nasceu numa. Obrigado à Rita por se sentir e dar a cara, obrigado a vocês pelo mesmo.

  • Jose

    11 Abril, 2020 às

    Isto sem um soviete da cultura não vai lá!

  • Teresa Muge

    11 Abril, 2020 às

    Muito bom!

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