Uma bala é uma bala

Nacional

Eu tinha acabado de chegar à rádio quando a emissão foi interrompida por uma mensagem urgente de Hugo Chávez ao país. Os acontecimentos sucediam-se em catadupa e a sensação era de que a história não era apenas uma disciplina mas algo que caminhava em cima dos ombros daquela gente. Nos bairros chiques da parte oriental de Caracas, os ricos sabiam pela primeira vez o que era ter insónias e insinuavam que as empregadas domésticas eram agentes chavistas.

Foi na cidade da eterna Primavera que viajei no tempo pela primeira vez. Não era o assalto aos céus mas era uma noite tão escura que os galos desataram a cantar quando começámos a disparar dos telhados de Caracas. Era preciso barulho, muito barulho. Havia apenas um mês que Hugo Chávez expulsara o embaixador norte-americano da Venezuela ao grito de ‘vayanse al carajo, yankis de mierda, que aqui hay un pueblo digno’ e o perigo electrizante de um novo golpe de Estado reclamava uma resposta à altura. Ao nosso lado, ladrava um enorme cão tinhoso que me fazia lembrar o conto de Luís Bernardo Honwana e ouviam-se foguetes por toda a cidade.

Foi no dia seguinte que conheci o Sérgio. Apresentaram-mo na livraria Divulgación. Já estava doente mas eu não sabia. Quando não estava a fumar, estava a beber café. Quando não estava a beber café, estava a fumar. Parecia um marinheiro à deriva num mar de livros e beatas de cigarros. Tinha chegado a Caracas na década de 50 e já trazia a consciência política de quem conheceu de perto a realidade da classe trabalhadora, dos pescadores e das varinas de Espinho. Chegou a conviver com António Ferreira Soares, médico assassinado pela polícia fascista, e aterrou na Venezuela como exilado político. Depois, participou no movimento cívico-militar que derrubou o ditador Marcos Pérez Jiménez em 1958 e liderou ainda o estágio militar dos membros do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL) que realizaram o primeiro sequestro político de um navio contra o fascismo de Salazar e Franco.

Mas a mais bonita das livrarias de Caracas apresentava no escaparate obras que em Portugal já só viviam no letargo dos alfarrabistas, prova de que algures no tempo também nós levámos a literatura a sério. Escreveu Bertolt Brecht, há 80 anos, que eram “maus tempos para a poesia”. A poucos meses de rebentar a mais sanguinária das guerras, o comunista alemão sentia-se perdido entre uma massa que dava mais valor à forma do que ao conteúdo. “Os barcos verdes e as velas alegres do Sund/não os vejo/de todas as coisas/vejo só a enorme rede do pescador”.

Quando o mundo volta a rugir e a velha serpente renasce do ovo, esquecemo-nos, como nos ensinaram estes dias os colombianos, que já chorávamos antes das granadas de gás lacrimogéneo. Talvez nos custe reaprender tudo o que nos fizeram esquecer e é provável que tenhamos de superar velhos debates. Com a desvalorização da ciência, regressam os idealismos, as velhas fórmulas mitológicas e a desmaterialização do real. A obsessão com o novo cega-nos de tal forma a experiência histórica acumulada numa vertigem constante de procurar algo diferente que não reparamos que muitas vezes é o outro lado da barricada que tem de nos mostrar que pouco mudou. Uma bala, esteja ou não no carregador, é sempre uma bala. Aqui, no Chile, na Bolívia ou na Colômbia.

10 Comments

  • Jose

    6 Dezembro, 2019 às

    O tempo das mútuas, ou de quando os filhos dos trabalhadores doentes se faziam presentes no dia de pagamento de salários, está passado.
    Se o estado social não estivesse submetido ao parasitismo de uma boyada incompetente, seria generosos bastante.
    O que se pode concluir é que a solidariedade na miséria não encontra paralelo na solidariedade na produção, que tanto 'socialista' com tão poucas cooperativas não significa outra coisa.
    O socialismo num capitalismo de abundância manifesta-se em mera solidariedade na sanha do saque.

    • Nunes

      6 Dezembro, 2019 às

      Um comentário vindo de um fascista declarado é sempre infeliz.

    • Jose

      7 Dezembro, 2019 às

      Ser declarado fascista por um tosco não pode ser evitado.

    • Nunes

      7 Dezembro, 2019 às

      O fascista «Jose» ficou magoado com o mimo.

  • Refer&ncia

    6 Dezembro, 2019 às

    «Talvez nos custe reaprender tudo o que nos fizeram esquecer e é provável que tenhamos de superar velhos debates. Com a desvalorização da ciência, regressam os idealismos, as velhas fórmulas mitológicas e a desmaterialização do real.» Com a queda do socialismo real voltámos a 1800 e carqueja. Temos de reaprender o proselitismo das mutualistas que esteve na origem dos sindicatos onde ganhámos força para criar partidos, temos de fazer hoje a "revolução" possível sempre com os olhos postos na desejada. Não podemos continuar a apanhar a carruagem dos coletes amarelos, da greve geral colombiana, da revolta chilena temos de voltar a saber liderá-las 😉

    • Nunes

      6 Dezembro, 2019 às

      A queda do socialismo real ou o regresso do socialismo?
      Na Venezuela existe uma revolução socialista que está a agitar a América do Sul, em todos os seus países.
      A própria revolução socialista venezuelana aproxima-se de ideias progressistas norte-americanas. Vejam-se as reportagens de Max Blumenthal, Aaron Maté, entre outros.
      A revolução está a ser feita e aproxima-se de nós, a passos largos.

    • Jose

      6 Dezembro, 2019 às

      Quando as revoluções escolhem para líderes personagens apalhaçados e corruptos, só o ridículo cobre os ideais que invocam.

    • Nunes

      6 Dezembro, 2019 às

      «Jose», quando vens aqui por aborrecimento ou chatice, deixar o teu comentário, és palhaço e ridículo.

  • Jose

    5 Dezembro, 2019 às

    Quando os cães tinhosos ladram a partir dos telhados algo está fundamentalmente subvertido.

    Quando um chorrilho de imagens não é poesia é arenga pela certa

    • Nunes

      5 Dezembro, 2019 às

      «Jose» a aflição e o «stress» em pessoa.
      As nuvens negras, «Jose»… as nuvens negras aproximam-se.

Comments are closed.