Z: Zelensky

Internacional / Teoria

Z: Zelensky

A guerra canonizou-o. São Zelensky nem teve subir a uma azinheira para aparecer aos portugueses como o presidente perfeito que nunca tivemos: corajoso, altruísta, humilde e honesto; um marido invejável na corrida ao Prémio Nobel da Paz; material incorruptível para fronhas e velinhas à prova de extremistas e oligarcas. Tudo muito lindo, mas devagar com o andor que o santo é de barro.

Antes da invasão russa, a última aparição do nosso santo fora nos “Pandora Papers”, onde surge, desde 2012, como dono de uma rede multi-milionária de fundos sediados em off-shores. Quando é eleito chefe do Estado, em 2019, vende a sua participação na rede off-shore a um parceiro de negócios e futuro assessor da presidência, não sem antes estabelecer um acordo para que a mulher continue a receber dividendos até aos dias de hoje. Confirma-se que é bom marido, mas não será pior amigo: Zelensky vence as eleições com o apoio político e financeiro (41 milhões ancorados em off-shores) de Ihor Kolomoisky, oligarca acusado de assassinar opositores, de roubar milhares de milhões de dólares ao seu próprio banco e de defraudar o Estado ao longo dos anos. Desde a inauguração como presidente, Zelensky não cumpriu nenhuma das três grandes promessas com que foi eleito (combater a corrupção, pôr fim à guerra e processar Poroshenko), mas foi lesto na nomeação para o governo de vários sócios da sua produtora audio-visual e de muitos homens de mão de Kolomoisky como o advogado-gangster Andriy Bohdan. Não se cospe no prato onde se comeu.

Não só Zelensky se mostrou indisponível para controlar as milícias neonazis como permitiu que o seu patrão, Kolomoisky, as financiasse e acicatasse contra a população do Donbass, protagonizando a violação sistemática e continuada dos acordos de Minsk. Para que não sobrem dúvidas, Zelensky condecorou o neonazi assumido Dmytro Kotsyubaylo, do Sector Direito, com as honras de Herói da Ucrânia, tornando-o na primeira pessoa viva a receber a mais alta distinção do Estado ucraniano.

O herói Zelensky deu à Ucrânia os contornos nítidos de uma ditadura: 19 partidos políticos foram ilegalizados; uma dezena de jornais, rádios, sites e televisões foram encerradas e censuradas; milhares de opositores políticos foram detidos, acusados de “traição”; centenas de civis, incluindo crianças, foram despidos, pintados, violentados e atados a postes de iluminação pública; presos de guerra foram torturados, humilhados e executados. Ainda a guerra não tinha estalado e o presidente do país mais pobre da Europa não pedia ajuda humanitária, só pedia armas.

E não, nada disto justifica a invasão da Ucrânia, como denunciar os crimes de Saddam não justificava a invasão do Iraque; como simpatizar com os Taliban nunca foi condição para condenar a invasão do Afeganistão.

Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um breve contributo para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.

1 Comment

  • João Carlos Lopes Pereira

    19 Junho, 2022 às

    Infelizmente, a maioria da população não consegue ler quatro parágrafos (seguidos) de um texto qualquer. Os que conseguem, quando chegam ao último… quase todos já não se lembram do primeiro. Dos que se lembram de todos os parágrafos, poucos conseguem relacioná-los. Os que os relacionam, dez minutos depois já se esqueceram de tudo.

    A cabeça de um alfinete é muito maior do que a cabeça de muitos seres humanos. Por enquanto, apenas em termos relativos.

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