
Há histórias que contadas no Primeiro de Maio, ninguém acredita que já foi 25 de Abril: um patrão faz um contrato a um imigrante; explora-o da forma mais brutal durante um ano; quando esse trabalhador faz greve, o patrão chama a polícia e denuncia a existência de um «imigrante ilegal» que é lestamente detido. O Manifesto74 conversou com Lucas Nascimento, o protagonista de uma história sobre dignidade e coragem.
Lucas chegou legalmente a Portugal, há quase dois anos, então com um visto de turismo. «Comecei a trabalhar no restaurante Miradouro Ignez em fevereiro de 2018, então eu estava legal», explicou ao Manifesto74. «Só me faltava o número da segurança social para poder fazer descontos, mas para ter esse número é preciso que a empresa passe uma declaração indicando que o funcionário está a trabalhar e tem meios de ficar no país».
Mas a desejada regularização não fazia parte dos planos do patrão que responde pelo nome de Mário Gregório: «Ficou a me enrolar por muitos meses, até que finalmente fiquei ilegal no país. Não existe problema na lei: existem patrões que querem se aproveitar da fragilidade da nossa situação para tirar proveito e fugir a impostos», sentenciou.
O «proveito» a que Lucas se refere é um extenso rol de crimes e imoralidades próprias de um traficante de escravos do século XXI: «assédio moral, abuso de autoridade, negação de direitos básicos como subsídio de refeição, horas extras e nocturnas não pagas, horários sempre a mudar e desrespeito pelos prazos para adaptação».
Práticas e métodos que, garante Lucas, mostram como os trabalhadores portugueses estão mais desprotegidos que os brasileiros. «Eu nunca tinha trabalhado aos domingos e nos feriados sempre recebi a dobrar… Já aqui em Portugal é outra história… horários repartidos, o povo trabalha de domingo a domingo, aos feriados e noite dentro. Muitos trabalhadores não têm horários fixos: vivem à merce da vontade do patrão e das horas que ele quer que sejam feitas».
Durante anos, a estratégia de Mário Gregório para explorar ao máximo os trabalhadores do Miradouro Ignez assentou no medo e na divisão dos trabalhadores. «Quando os trabalhadores estão unidos, um patrão desonesto não tem hipótese. Mas com a casa dividida e brigas entre os funcionários, é fácil fazer a vida negra a quem ou mesmo despedir quem faz frente ao patrão». O medo, porém, provar-se-ia ineficaz com Lucas Nascimento.
«Venho de uma família desestruturada e sempre tive muitos conflitos em casa por conta dos vícios do meu pai. Tive de aprender a protestar e a combater desde pequenino. Como minha mãe e meus irmãos não conseguiam fazer-lhe frente, tinha de ser eu. Aos quinze anos consegui expulsá-lo de casa de uma vez por todas, mas esta postura, de não me render perante a injustiça, ficou para sempre».
Portugueses e imigrantes, unidos
À medida que o embrião da luta gestava no restaurante, as velhas «brigas» entre trabalhadores davam lugar à solidariedade. Os portugueses aperceberam-se de que as ilegalidades cometidas contra os imigrantes serviam apenas para pressionar os seus próprios direitos. Estendiam-se pontes entre as exigências de cada um, cada qual descobria no outro a força que sozinho não tinha e, acima de tudo o resto, descobriram que a luta era o único caminho.
«Após ver que nos órgãos responsáveis as chances de mudar algo era quase nula, uma vez que a ACT já tinha autuado o local e nada tinha mudado, tentámos o sindicato, até porque nós não sabíamos quais eram nossos direitos como funcionários da empresa. Nessa altura estávamos muito desgastados e já sem esperança. Lá conhecemos a Albertina que nos recebeu com muita alegria, nos explicou muita coisa, e numa rápida votação, meus colegas me escolheram como delegado do Sindicato da Hotelaria do Norte (SHN).»
Seria o início de uma batalha heroica entre a dignidade e a prepotência, entre a lei e o dinheiro, entre explorados e exploradores.

Sobre o SHN, que desta forma entrou para a liça, Lucas não poupa elogios: «Tem feito um trabalho incrível, nunca fui tão acolhido e defendido em toda a vida. O Sr. Figueiredo e o Sr. Nuno são homens exepcionais e altruístas», diz dos dirigentes sindicais com que tem contactado, «a luta deles é mesmo a luta de todos que trabalham na restauração».
Perante a absoluta intransigência do patrão, os trabalhadores do Miradouro Ignez avançaram para uma greve de dois dias, a 1 e 2 de Abril, exigindo o cumprimento da lei e o respeito pelos seus direitos. A greve foi um rotundo sucesso, mas a resposta do patrão surgiria depois, quando Mário Gregório despediria ilegalmente Lucas e outros dois trabalhadores imigrantes, chamando a polícia para o deter quando se apresentou ao trabalho.
A PSP confirmou à Lusa a detenção, «após denúncia de que um cidadão estrangeiro podia estar em situação de permanência ilegal no país».
“Tu não és meu funcionário. És apenas um prestador de serviços e o que recebeste está ótimo. Não entres mais ao serviço que não te quero mais aqui!”
Lucas mantém a vontade de regressar ao seu local de trabalho, mas com mudanças. «Ele tem de perceber que não pode continuar tratar os trabalhadores desta forma» e espera que essas mudanças podem inspirar outros trabalhadores, «o meu caso e dos meus colegas é o caso da maioria dos portugueses que trabalham na área da restauração. Os trabalhadores precisam acordar e lutar contra as injustiças que esse setor promove», sublinha.
A um oceano de distância, Lucas não esconde «uma tristeza imensa» pela situação política do seu país natal e aponta o dedo à reforma laboral de Bolsonaro que «não está a gerar mais empregos ou riqueza, mas sim mais desigualdades», acusa. «O homem que eu via como uma piada está no Poder e aquele que eu admirava está preso. Não sei se sou eu que estou errado ou se é o mundo que está ao contrário».
Não, Lucas Nascimento nunca esteve ilegal em Portugal. Esta terra e a sua cidadania pertencem a quem nela vive e trabalha todos os dias. Já patrões como o dono do Miradouro Ignez, Mário Gregório, estão, eles sim, ilegais, por violar sistematicamente a lei do trabalho, assediar, ameaçar e aterrorizar os trabalhadores mais vulneráveis e explorar desumanamente os que vivem do seu próprio suor. Podíamos começar por denunciar Mário Gregório ao SEF. Pode ser que o deportem para o séc. XIX.