Certamente não passaria pela cabeça de ninguém privatizar uma cidade. Cidade enquanto espaço de pessoas, de trabalho, de habitação, de convivência intergeracional. Claro que há espaços privatizados mas o conceito de transformação da cidade como um espaço, ele próprio, privado, aberto apenas a alguns, eventualmente com reserva de direito de admissão é uma ideia estranha.
Assemelhada aos tempos medievais em que a muralha defendia e isolava a povoação, com a vantagem dos portões não serem, necessariamente, uma bilheteira.
Contudo, o espaço público tem vindo, pouco a pouco, a transformar-se num espaço privado. E elitista. Já nem me detendo nas praias ou espaços naturais selvagens vendidos à construção de luxo, já é «normal» o encerramento de praças, vias públicas, jardins públicos para a realização de eventos mais ou menos «abertos ao público» para a promoção de um produto ou uma marca.
O encerramento das ruas, na capital do país. Lisboa, de repente, transforma-se paulatinamente num circo multicolor patrocinado por marcas preferencialmente geridas por Belmiro de Azevedo. As avenidas principais encerram para a realização de feiras campestres que promovem os produtos Continente. A praça do Município cerca-se de um cordão policial para garantir que só alguns assistem à apresentação de uma grande operação de marketing de uma operadora de comunicações. Todos os largos na baixa da cidade são rebaptizados com o mesmo nome – NOS – para a realização de vários concertos. O jardim da Praça das Flores é encerrado e erguem-se tapumes negros e altos para a exposição de carros. Os bancos da Avenida da Liberdade perdem a sua tradicional cor vermelha para se pintarem com o logo de uma qualquer marca que ninguém percebe bem o que é. A mesma Avenida, a da Liberdade, fecha-se à circulação de pessoas e de carros vários dias para a realização de corridas automóveis onde só entram convidados e os que podem pagar bilhete.
Também podemos falar de Monsanto ou Bela-Vista, esta última condicionada repetidamente, sem que se conheçam propriamente quaisquer contrapartidas dos contratos milionários que são celebrados com o Município Lisboeta.
Tudo isto sob a atenta batuta de José Sá Fernandes, que dispõe do espaço público como de espaço seu se tratasse. Os passeios passam a ser das lojas, os muros apenas podem ser pintados com anúncios a marcas de tintas ou se for um concurso devidamente autorizado pela Câmara, a cidade deixa de ser cidade.
Em contrapartida, as brigadas correm a cidade para a expurgar de elementos políticos, particularmente nas chamadas «zonas nobres» e rapidamente se tapam as palavras de luta com que as pessoas marcam o espaço público. A própria cultura urbana é transformada em peça vendável e os graffitis e picotagens passam a ser exposições com altos patrocínios.
Na verdade, de cada vez que se passa uma portagem à entrada de Lisboa, quase que se compra um bilhete para um conjunto grande de diversões. Viver na cidade torna-se proibido. Gentrificam-se os lugares, fecham-se os hospitais urbanos para dar lugar a locais de elite ou de turismo, os prédios nos bairros vendem-se ou arrendam-se e o património degrada-se.
Já não há cinemas de rua, espaços comuns de convivência popular, mesas de damas e de cartadas, campos onde se joga à bola. Não. Sá Fernandes transformou a cidade de Lisboa num local de entretenimento que abre e encerra consoante a programação de Belmiro e a afluência turística. Qualquer dia, todos os que ainda conseguirem viver na cidade serão obrigados a pintar as casas com logotipos dos patrocinadores de Lisboa e a cidade dos corvos e das pessoas passará a ser mais um gigantesco centro comercial onde tudo está à venda. Com o gentil mecenato da Sonae. Disse-se um dia que o zé fazia falta. E que Lisboa era gente.