Alteração aos recibos verdes – o abraço do urso

Nacional

É com pompa e circunstância que alguns que se declaram «inflexíveis» e, claro, o sempre presente na ribalta dos equívocos, José Soeiro do Bloco de Esquerda falam em avanço civilizacional e outros quejandos. Já estamos demasiado habituados a que alguns deputados saibam pouco (ou nada) do que falam, mas desta vez é levar o foguetório ao insulto para quem trabalha a recibos verdes e, sobretudo, falsos recibos verdes. E porquê? O acordo alcançado somente negociado entre BE e PS – pergunto eu porque excluíram PCP e sindicatos, já sabendo a resposta – vai muito mais longe do que a direita alguma vez teve coragem.

Aproxima de tal forma o regime do Código do Trabalho com o recibo verde que o caminho inevitável é tornar obsoleto o Código do Trabalho e a existência de contrato de trabalho, permitindo que as empresas, pagando menos à Segurança Social, contratem como querem. Sobre IRS e a taxa de retenção brutal, nem uma palavra. Sobre direitos laborais, nada.

E digo isto bem ciente do que se passa quando um trabalhador vai a tribunal exigir o seu contrato: instalou-se nos tribunais a ideia de que a empresa tem capacidade para gerir os seus recursos humanos como bem entende, independentemente da lei, e são raros (para não dizer inexistentes) os casos em que os juízes decidem que em vez de prestação de serviços devia existir um contrato de trabalho (incluindo, por exemplo, o caso de um professor a dar aulas contratado por uma Câmara, com horário completo, mas que tinha «autonomia técnica – decisão do Supremo Tribunal de Justiça).

Esta leva começou com outra obra dos tais inflexíveis, a Lei contra a Precariedade. Destruindo poucos dos mecanismos bons ainda existentes na legislação, inventaram uma lei completamente à margem do que é o nosso sistema judicial e o resultado prático foi: é preciso denunciar à ACT (que quando não está a proteger os patrões está a levantar autos que depois não tem pessoal para levar a tribunal e prescrevem ou as multas são tão baixas que compensa pagar), esperar que o Ministério Público avance com a acção. Nisto, o trabalhador – que não pode ser autor da acção, é só testemunha, fica completamente na mão do patrão. Em julgamento, vai dizer que é prestador de serviços, que não tem horário de trabalho, etc, o patrão é absolvido, o trabalhador despedido e se levar indemnização é por baixo da mesa. Foi isto que conseguiram. E se alguém souber de alguma acção que tenha resultado de forma diferente, digam por favor, porque até juízes e magistrados já se rebelaram contra esta lei (o que não é fácil, é para ver o grau de ineficiência e até subversão da lei).

O mesmo se passa com este acordo. Será muito mais fácil esconder um falso recibo verde, que deve ter um contrato de trabalho, com direito a férias, a faltas, a trabalho suplementar, a subsídio de refeição, a direitos de personalidade, paternidade e maternidade, à contratação colectiva – no local de trabalho e na segurança social!!!!

O que o BE e PS optaram por fazer foi dar uma migalha às grandes empresas – sim, porque os verdadeiros recibos verdes vão usar os 50% para poder aumentar os seus descontos e só empresas com capacidade para tal (grandes sociedades de advogados, arquitectos, engenheiros, etc) – penalizar quem compensa o seu magro salário de trabalho dependente com recibos verdes, aumentando os descontos para o trabalhador (!!!), e ir esbatendo as diferenças entre prestação de serviços e contrato até um ponto que alguém se vai lembrar de dizer: o regime de segurança social é praticamente igual, acabe-se com os contratos. E teremos certamente PS, CDS e PSD a votar favoravelmente, aplaudindo o BE.

Em matéria de recibos verdes, como noutras, não pode haver contemplações: para posto de trabalho permanente, contrato efectivo.

E relembro:
Pagar quando se recebe. Pagar sobre o que se recebe. Eliminar os escalões e as remunerações convencionadas (presumidas). Perdoar as dívidas à Segurança Social (porque imorais e ilegítimas, com juros agiotas). Justiça. Elementar justiça.

Nos idos de 2009, o PS apresentou uma proposta de Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. Sim, é um nome enorme e pouco perceptível, mas em poucas palavras é um Código que rege as contribuições de todos os trabalhadores para a Segurança Social e as respectivas contrapartidas.

À data, o PCP bateu-se, e foi o único partido que o fez, contra uma série de «capítulos» desse Código que estabeleciam regimes diferenciados e ainda hoje profundamente injustos: agricultores, pescadores, trabalhadores independentes. Apresentou dezenas de propostas, todas chumbadas. E desde então tem vindo a reapresentá-las em cada mandato, na esperança que alguma justiça social se faça com estes trabalhadores, obrigados a contribuir, tenham ou não rendimentos. Mesmo quando é o próprio Estado a impedi-los de trabalhar: como é o caso dos pescadores, em alturas de defeso, é preciso pagar, pagar, pagar. E para quê? A protecção social é praticamente inexistente. As taxas contributivas demasiado altas.

Mas hoje foco-me apenas nos trabalhadores independentes ou os chamados recibos verdes. Como é que ninguém se lembrou disto antes? O PCP lembrou-se. Reiteradamente.

E sobre esse Código afirmou, em 2010:Um dos aspectos mais negativos foi a perda da oportunidade de corrigir o regime contributivo dos trabalhadores independentes prestadores de serviços.

De facto, os trabalhadores independentes que são prestadores de serviços, por um lado, estão sujeitos ao desconto com base em rendimentos fictícios – as remunerações convencionadas – obrigando-os a descontar para a Segurança Social mesmo que não aufiram qualquer rendimento e permitindo, ao mesmo tempo, que quem aufira rendimentos mais elevados contribua com base em remunerações mais baixas, por outro lado têm direito a uma diminuta protecção social quando descontam grande parte do seu rendimento.

(…)

E são sobretudo os mais jovens que são penalizados. Toda uma nova geração aufere pelo seu trabalho salários que muitas vezes não chegam sequer aos €1000,00; e, sendo prestadores de serviços, umas vezes têm trabalho e remuneração, outras vezes não, sendo que a contribuição para a Segurança Social é obrigatória, tendo estes trabalhadores remuneração ou não.

(…)

Assim, o PCP propõe a alteração do Código, eliminando as remunerações convencionadas, garantindo que os trabalhadores independentes que são prestadores de serviços apenas contribuem mensalmente com base no rendimento efectivamente auferido, correspondendo a base contributiva a 70% dos rendimentos obtidos.

O PCP propõe ainda que, nos casos em que o rendimento relevante seja igual ou inferior ao valor do IAS, o trabalhador pode requerer que lhe seja considerado, como base de incidência, o valor daquele rendimento, com o limite mínimo de 50% do valor do IAS.

Aqueles milhares de trabalhadores das artes, do design, da arquitectura, jornalismo, tantas outras actividades que viram as suas vidas penhoradas com milhares de euros de dívida à Segurança Social porque têm que pagar, todos os meses, recebam ou não. Aqueles milhares que são enquadrados dois escalões acima (porque no ano anterior receberam mais uns trocos) e a dívida avoluma-se. Aqueles que não podem ser contratados porque se forem o salário que ainda não lhes foi pago já tem ordem de penhora, têm aqui a sua solução, simples, clara, justa:

Pagam, com a emissão de recibo, apenas sobre o que efectivamente recebem, sendo a base contributiva 70% do recebido (ou seja, contando 30% do rendimento como utilizado em despesas profissionais). E com redução da taxa contributiva e aumento da protecção social (designadamente no desemprego, invalidez, maternidade e paternidade). Os verdadeiros independentes. Porque o PCP propôs, num acto de audácia, a criminalização do falso recurso aos recibos verdes e ao trabalho temporário. E propôs que seja a ACT, através das inspecções, que converta – automaticamente – os falsos recibos verdes em contratos de trabalho e o patrão, se quiser, que recorra ao tribunal, pague as custas e prove que o trabalho não é permanente.

Estas propostas são simples, da mais elementar justiça e estão em cima da mesa. Desde 2009.

Agora, se esta lei for aprovada, estamos todos em maus lençóis. Inevitavelmente, a curto prazo, todos serão contratados a recibos verdes. E o agradecimento ao PS e ao BE será inevitável para quem ache hoje, ingenuamente, que é uma boa medida aproximar os regimes da segurança social e tornar praticamente impossível provar o que é o falso recibo verde. Que se lixe o contrato de trabalho.

1 Comment

  • mp

    26 Dezembro, 2017 às

    Este comentário foi removido pelo autor.

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