Este texto não é sobre praxes

Nacional

Poderia dizer-se muito sobre as praxes, mas na verdade não me interessa entrar na histeria colectiva que enreda muita gente cada vez que acontece alguma coisa mais grave. Na verdade, não podia ser mais indiferente ao conceito de praxe por um simples motivo: há uma coisa que se chama livre arbítrio.

Do que fui lendo e ouvindo sobre o Meco, essa novela apaixonante em que se vão descobrindo novos detalhes a cada dia que passa, só lhe encontro semelhanças com episódios do CSI ou de uma série portuguesa, da SIC, que surgiu para combater os Morangos com Açúcar, evidentemente sem sucesso.

Não me lembro do título, mas lembro-me de se passar num colégio privado (claro!) e de haver uma sociedade secreta de alunos, onde os seus membros usavam umas capas monásticas, velas e acho que matavam pessoas, chantageavam outras para terem dinheiro para os seus caros hábitos (não as roupagens, os outros).

Seja o que for que aconteceu há dados objectivos: a submissão de um grupo de pessoas a outro grupo de pessoas, a existência de um grupo de elite com rituais de iniciação que, supostamente, desafiam os limites de cada indivíduo, o sentimento de pertença a um colectivo superior aos restantes alunos e o silêncio e conivência de todos com esta organização hierárquica de um grupo de alunos de uma universidade.

Mais parecem os senhores de avental que mandam no país. Ora, a meu ver, esta organização não tem rigorosamente nada a ver com praxes. Tem a ver com uma sociedade de consumo doente em que o poder, a meritocracia, o individualismo e a competição são impostos todos os dias quer pelo governo, pelos órgãos de comunicação social, pelas séries televisivas, pelos filmes e pelo próprio sistema de ensino. Tens que ser melhor do que o do lado, tens que ter as melhores notas, tens que lutar até ao topo. Independentemente de quem fique pelo caminho.

A superação de todos os limites, numa sociedade completamente amoral que se rege pelo lucro e pelo status quo. Estamos a falar de um país que admite criminosos como seus governantes, que acha que porque a, b ou c são doutores ou engenheiros, necessariamente entendem mais dessas coisas da política do que operários e outros trabalhadores.

Estamos, portanto, a falar da influência do capital sobre os comportamentos de grupo. E, neste grupo concreto, pessoas que se submetem voluntariamente a experiências que desafiam os seus limites e põem em causa a própria vida (fazendo fé no que agora se reporta) estão, no mínimo, a adoptar comportamentos de demência colectiva (não consigo epitetar de forma diferente, lamento) para adquirir o estatuto do poder pelo poder. E a existência do tal pacto de silêncio só enfatiza o nível de demência de comportamentos absurdos que são vistos como absolutamente naturais. Estes tipos de comportamento acontecem em várias organizações: nas empresas onde os trabalhadores são sistematicamente assediados pelos seus superiores hierárquicos (o exemplo flagrante dos bancos, onde nasceu o conceito de assédio moral aquando de um suicídio no local de trabalho); nos órgãos de poder (onde, apesar da apregoada meritocracia, estão cada vez mais carreiristas e usam do seu poder para brutalizar a população em geral); nas escolas (onde agora se chama bullying); nos vários tipos de discriminação e violência exercida sobre grupos mais vulneráveis.

É também, mas não só, uma questão de classe. Mas é-o não apenas pela condição social do estudante universitário (pertencente cada vez mais a uma pequena elite de quem pode pagar os estudos) mas essencialmente pelo conceito de classe com que são infestados todos os dias.

E toda esta demência se vai alargando até aos julgamentos em praça pública dos doutores anti-praxe (sem dados, sem conhecimento mas o que vociferam pelo fim das praxes!) até mesmo ao pedido da proibição por lei. A contradição desta última é, então, notória: exigir o fim de comportamentos de domínio por outros comportamentos de domínio. É certo que há países onde a praxe é ilegal, como França, mas nem irei discorrer sobre as dificuldades jurídicas de qualificar materialmente o comportamento de duas pessoas juridicamente responsabilizáveis em que uma se submete voluntariamente ao assédio de outra, mas apenas direi: não resultou. As praxes continuaram. E agora? Persegue-se e vigia-se atentamente o comportamento de todo e qualquer estudante e incita-se à denúncia?

Mas enfim, como disse, isto não é um texto sobre praxes. É sobre o domínio de outro ser humano. A sua exploração através de comportamentos violentos e atentatórios da sua dignidade. E o suposto consentimento de quem a eles se submete (e não é tão engraçado que alguns dos que vociferam pelo fim das praxes acham, contudo, que a prostituição é uma escolha?). E o comportamento grupal de uns que, um dia vítimas, são agora agressores e perpetuam (ou escalam mesmo) esses comportamentos violentos sobre outros?

Não, isto não é uma questão de praxe. É o reflexo da sociedade de que fazemos parte replicado num contexto micro. É o que acontece todos os dias sem as capas negras. O combate não se faz certamente aceitando a alienação da proto-discussão, a elaboração de teses sobre o que realmente terá acontecido (ou não), o debate sobre questões «fracturantes», tão fracturantes quanto os minutos a mais com que o Porto começou a jogar eliminando, supostamente, por esta via o Sporting da Taça da Liga.

O Meco, além da tragédia de 6 jovens mortos, é pão e circo.