Eu acuso

Nacional

Foi após ter visto J’accuse, de Roman Polanski, com Jean Dujardin e Louis Garrel sobre o infame caso Dreyfus, que, inevitavelmente fui reler a carta de Émile Zola.

E a cada palavra, senti a injustiça a correr-me nas veias. Tal como em 1894, o sistema judicial e o sistema político continuam a cruzar-se, a determinar opções e decisões, violando princípios basilares dos direitos dos cidadãos, e, nalguns casos, como este de que vos falo, as suas vidas.

Não foi uma especial vocação que me trouxe a este caminho, mas o meu percurso de vida, as pessoas com quem me cruzei, os valores que defendo. Mas aqui estou, num caminho sem regresso.

E como foram ousados, serei da minha parte ousada também. Vou falar a verdade, pois prometi resguardá-la, já que a justiça, conspurcada diversas vezes, não faz isso, plena e inteiramente. Tenho o dever de falar, eu não quero ser cúmplice.

Acuso o Chefe Luis Anunciação, ainda agente da PSP, de ter comandado os agentes da esquadra da Amadora, criando uma narrativa de culpabilização do povo honesto e trabalhador do Bairro da Cova da Moura, durante cinco anos, sem nunca reconhecer a sua culpa, apesar de condenado pelo tribunal de primeira instância e Tribunal da Relação e nunca pedir desculpas pelas vidas que tentou destruir.

Acuso o agente da PSP João Nunes por, apesar de ter cometido crimes contra pessoas pela cor da sua pele e por eles ter sido condenado, afirmar publicamente que as suas vítimas são “vagabundos, que nada fazem além de vender droga e brincar com armas” e “bandidos com cadastro” e dizer que “Somos como um castelo construído em cima de madeira podre, sendo que o sistema judicial e todos os seus interesses são essa madeira. Nojenta”.

Acuso o agente da PSP Paulo Santos, na data de 5 de Fevereiro de 2015 subchefe da EIFP da Amadora, absolvido no âmbito do processo, por ter proferido sobre as vítimas desse mesmo processo as afirmações “Tens muitas saudades da Kova, dasse”; “Eu andei nessas colónias mais de 15 anos, saudades???? Puta que os pariu esses indígenas todos.”

Acuso o Diretor Nacional da PSP, Manuel Augusto Magina da Silva de ter entre as mãos as provas indubitáveis da violação de deveres a que estes agentes estão sujeitos e de nada ter feito, tornando-se, pois, culpado de crime de lesa-humanidade e lesa–justiça, por motivos políticos e para livrar um Estado-Maior comprometido.

Acuso a Senhora Inspetora Anabela Cabral Ferreira e o senhor Inspector José Manuel Vilalonga de terem feito uma investigação criminosa, um inquérito da mais monstruosa parcialidade e do qual temos, no relatório do segundo, um monumento perene da maior audácia, absolvendo 7 dos nove agentes que vieram a ser condenados e ainda não tendo agido disciplinarmente sobre aqueles contra quem nunca abrira qualquer processo nem sobre aqueles cujas afirmações públicas xenófobas e racistas foram públicas.

Acuso o Ministro da Administração Interna de ter promovido na imprensa (…) uma campanha abominável, para manipular a opinião pública e acobertar sua falha.

E é voluntariamente que eu me exponho.

Quanto às pessoas que eu acuso, não as conheço, algumas já as vi, mas não nutro por elas nem rancor nem ódio. Não passam para mim de entidades, de espíritos da malevolência social. O ato que aqui realizo não é nada além de uma ação revolucionária para apressar a explosão de verdade e justiça.
Não tenho mais que uma paixão, uma paixão pela verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado nada mais é que o grito da minha alma.

É o que espero.

As palavras em itálico são de Émile Zola, escritas em 1894. Hoje estamos a 16 de Fevereiro de 2021.