O ciúme como fonte de direito

Nacional

Eu deveria ter pouco mais de 25 anos quando, em Ovar, confrontada com um colectivo de juízes (mulheres) vi o julgamento ser interrompido porque a juiz presidente entendia que estávamos perante um crime continuado e não uma reincidência. Apesar dos meus melhores esforços para explicar que já tinha havido julgamento pelo crime prévio – violência doméstica – e este teria sido cometido 3 anos mais tarde, já contra mulher e filhas, de pouco me valeu. O julgamento foi interrompido.

Naturalmente, o sangue já me fervia porque sabia que a conclusão seria continuar o julgamento, mas entretanto as vítimas estavam ali a ver a minha palavra ser posta em causa e a perceber que o colectivo não tinha analisado o processo.
Meia hora depois, o julgamento reinicia, mas a juiz dispensa a audição de testemunhas porque tinha um relatório psiquiátrico do arguido, Um relatório que não havia sido feito a propósito daquele processo (embora requerido e negado), mas a propósito do anterior.

Nesse relatório o arguido foi considerado inimputável por ter sido considerado que, no momento da prática dos factos, sofria de «delírio de cariz celotípico (ciúme)». Isto é, um indivíduo perfeitamente inserido socialmente, licenciado, com (muito) dinheiro no banco, sem nunca ter tido um processo disciplinar no trabalho, mas detentor de arma sem licença que usava exclusivamente para ameaçar filhas e mulher, para esse facto, exclusivamente, a justiça considera-o incapaz de avaliar as suas acções e ter consciência delas. Duas vezes decidiu o tribunal desta forma. Não pode ser penalizado. Pode ter tratamento psiquiátrico gratuito. As vítimas, se quiserem, que paguem.

Recentemente, as notícias revelam uma decisão do Tribunal de Guimarães, que, uma vez mais, desvaloriza o ciúme, determinando até quase como circunstância atenuante de um crime de homicídio em que um jovem matou a sua namorada.
Claro que, lendo isto, pensei que em Guimarães algo se passava. Mas fui pesquisar. A teoria não é nova. Nem tão pouco da lavra dos magistrados de Guimarães. Não senhor. Palavra por palavra. o Supremo Tribunal de Justiça já o decidiu assim:

IX – Mas, embora o motivo tenha sido muito reprovável, não se deve qualificá-lo como «fútil», isto é, irrelevante ou insignificante, ou como «torpe», ou seja, vil e abjecto.

IX – Mas, embora o motivo tenha sido muito reprovável, não se deve qualificá-lo como «fútil», isto é, irrelevante ou insignificante, ou como «torpe», ou seja, vil e abjecto. (Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.ç 830/09.8PBCTB.C1.S1, de 07-12-2011.)

Do mesmo tribunal: «VI – Todo o circunstancialismo descrito remete para o «homicídio passional» e não para um plano criminoso. Se a recusa do reatamento da relação com o arguido era um direito que assistia à vítima, que entretanto iniciara um novo relacionamento, o conjunto de circunstâncias apuradas, mormente a vontade do arguido no reatamento da relação pelo qual insistia, não permite qualificar de fútil, isto é, irrelevante, insignificante, sem sentido, o motivo de que o homicídio resultou, julgando-se portanto não verificado o exemplo-padrão da al. e), contrariamente ao que decidira a primeira instância. » (acórdão do STJ proferido no âmbito do processo n.º 663/10.0GBABF.S1, de 5/07/12).

Ou ainda: IX -Para haver privilegiamento do homicídio por emoção violenta é necessário que o agente se encontre dominado por emoção violenta, que tal emoção seja compreensível, mas também que seja tal emoção a causadora do acto criminoso (o nexo causal entre a emoção e o crime é bem expressa pela expressão “é levado a matar”).

X – Quanto à questão de saber como ajuizar o poder das razões que ocasionaram a emoção violenta, desenham-se na doutrina e jurisprudência duas linhas, sendo uma que entende que este critério deve ser concretizado por referência à personalidade daquele agente que actua; outra que defende que a compreensibilidade há-de aferir-se, não em relação às particularidades concretas daquele agente, mas em relação a um homem médio com certas características que aquele agente detém.

XI -O desespero, como elemento que privilegia o crime, significa ausência total de esperança, sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das elementares condições para a manifestação da dignidade da pessoa. O desespero significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo, de tal forma que se permite considerar, nas circunstâncias do caso, uma acentuada diminuição da culpa por menor exigibilidade de outro comportamento.»

Expressões como «estava a pedi-las», «a culpa é dela que se meteu com outro», a desculpabilização e normalização de comportamentos violentos que vão da apreciação do que se veste, à vigilância de telemóveis, emails, amigos até a um número crescente de violência nos crimes contra as mulheres – e a sua desvalorização jurídica – é um péssimo sinal de que o classismo e o machismo na justiça imperam e ganham terreno.

Um sistema judicial cuidadosamente construído sobre preconceitos sociais, raciais, de classe que determina a vida de todos nós. E esta desvalorização e desculpabilização do ciúme quase como justificativo seja do que for tem que fazer soar todos os alarmes. E só não tem medo quem não está atento. Particularmente, quem não está atenta.

1 Comment

  • Jose

    30 Abril, 2018 às

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