O outro lado da cortiça

Nacional

Nasci, cresci e vivi grande parte da minha vida em Santa Maria da Feira. Ainda vivo espartilhada entre cidades, sendo que é ali o meu lar. No meu Partido, toda a vida, estive lado a lado com corticeiros. Era fácil saber quem eram mesmo sem lhes falar porque grande parte deles tinha marcado no corpo o seu saber. Literalmente. Uns tinham perdido um dedo na broca, outros parte de dedos.

Desde muito cedo, com eles, estive à porta das muitas corticeiras do nosso concelho. Hoje contam-se as que sobraram porque a maioria foi asfixiada pelo poder do Grupo Amorim. Não é raro ouvir que um pequeno empresário se suicidou por não poder pagar as dívidas. Mais uma família que fecha a sua pequena fábrica, estrangulada com os créditos dos amigos do BES (lembram-se daquela linha de crédito a micro, pequenas e médias empresas liderada pelo BES e apoiada pelo governo Sócrates?).

Foi à porta dessas empresas, onde todos os meses estávamos, que cedo tomei nota em primeira mão da discriminação salarial brutal entre mulheres e homens no sector corticeiro. Eram mais de cem euros para tarefas iguais. Ali, à porta, havia trabalhadores que timidamente aceitavam o papel do PCP e o escondiam para que não fossem vistos. Também muitos nos diziam que nunca iríamos ganhar nada porque o país precisa é dos engenheiros e doutores do CDS e do PSD, que os operários nunca chegariam a lado nenhum.

Eram locais difíceis onde, não raras vezes, os seguranças estavam muito atentos a quem queria receber um papel ou falar connosco.

Fazíamos, contudo, questão de parar os carros de alta cilindrada à saída para lhes entregar os documentos e fazer saber que ali estávamos e ali iríamos voltar.

Foram milhares de distribuições. Foram também milhares de vigílias junto à APCOR de cada vez que uma empresa fechava, deixando trabalhadores meses e meses sem salários e roubando as máquinas do interior da empresa. Marchas à chuva, concentrações ao sol, as ruas de Santa Maria de Lamas iam sempre dar aos patrões da cortiça.

Foi ali também que ouvi as histórias das mulheres que cuidavam dos pais e dos filhos, que trabalhavam desde os 10 ou 12, que não sabiam como iam cuidar da família: nenhuma falava de si. Foi ali que vi os natais (sempre os natais) que lhes anunciavam o desemprego.

Foi ali que conheci o Sindicato dos Operários Corticeiros, o Alírio, o Mota, o Germano (e tantos outros) e que vi como o Sindicato foi crescendo, sempre do lado certo. Como orgulhosamente tornou a igualdade salarial na sua prioridade apesar de, no parlamento, o Bloco de Esquerda insistir em culpar o sindicato acusando-o de assinar um acordo colectivo de trabalho ou a UMAR publicamente atacar estes (e estas!) trabalhadores, incluindo na queixa que apresentaram tendo por base o acordo colectivo. E lembro-me bem do que, à data senti: nunca os tinha visto em nenhuma destas concentrações ou vigílias, em reuniões, à porta de fábricas e, ainda assim, culpavam os próprios trabalhadores por uma desigualdade imposta pelos patrões com total alheamento de como funciona uma negociação colectiva de um acordo. Sem sequer entender porque é que tinham assinado o acordo e ignorado, deliberadamente, a luta de anos que vinham a desenvolver para acabar com as discriminações salariais.

Elas, eventualmente, acabaram no papel, por via do acordo tripartido e faseado celebrado com o Ministério do Trabalho e, escusado será dizer, já sabemos quem chama a si a vitória.

Mais uma vez, os corticeiros caíram no esquecimento porque já não saíam nos jornais.

Mas continuam a trabalhar ao dia, à semana, a perder partes das suas mãos nas brocas, a receber o salário mínimo, a ver empresas a fechar, a concentrarem-se à porta das empresas e da APCOR. O Alírio, o Armando, o Germano, lá continuam. E reencontrei-me com eles, na semana passada, em frente à Câmara Municipal da Feira, onde dezenas e dezenas de trabalhadores estavam em solidariedade com Cristina Tavares, a Cristina que para muitos de nós é a única Cristina de que falamos. A mesma que foi encontrar forças, ninguém sabe bem onde, para ultrapassar os actos violentos, humilhantes e degradantes que lhe infligiram porque insiste, insiste e insiste em manter o seu posto de trabalho.

Já conheço bem a sua história porque não há camarada que não ma conte, não há dirigente sindical que não a saiba, não há um sindicalista que não tenha estado numa acção promovida pela CGTP, não há uma mulher do MDM que não tenha já manifestado a sua solidariedade.

E não, não conheço Cristina pessoalmente nem faço gáudio disso para poder escrever um artigo de jornal apenas para dizer isso mesmo. Não preciso de conhecer porque cresci no meio de muitas Cristinas. Mas admiro-a. Profundamente. Não sei como se resiste a tamanha violência.
Naquela concentração ouvi Arménio Carlos dizer que já lhe ofereceram milhares de euros para que desistisse dos processos e se afastasse. Mas Cristina respondeu sempre a mesma coisa: não quero o vosso dinheiro, quero o meu posto de trabalho.

E sei bem como é difícil esta postura até ao fim. Muitos foram já os que vi não o conseguir fazer e de nenhuma forma critico quem ao fim de anos a ser violentado (há muitas formas de assédio), não aguente mais. Num só dia, já assisti à assinatura de 24 rescisões e despedi-me de um a um com lágrimas nos olhos. Já passaram três anos sobre esse dia e apenas um encontrou trabalho.

Esta postura de Cristina devia ser um exemplo para os governantes. Despedida uma e outra vez, não desiste. Mas o governo não quer saber. Os deputados do PS, do PSD, do CDS, do PAN não querem saber. Nestas concentrações, vejo sempre os «mesmos»: PCP, Bloco de Esquerda, Os Verdes. Sempre.
São os únicos que sabem quem é a Cristina. Ou que querem saber. Cristina não inspira as fotos das deputadas na assembleia da república. Não se juntam para lhe prestar homenagem. Não inspira as associações «feministas» a fazerem concentrações, vídeos para o instagram, posts para as redes sociais. Não inspira o entretainer Marcelo. Como nunca inspiraram as trabalhadoras da Triumph. Para esta gente, as operárias são talvez menores.

Há pouco tempo vi um filme sobre um advogado, activista, que sempre lutou contra o racismo,  pelos direitos civis dos negros. Um desajeitado, mal vestido que andava de autocarro. Não falava a linguagem da modernidade, ainda ouvia cassetes, não se ajeitou numa palestra da nova geração de activistas que rapidamente o descartou. E alguém diz «We stand on his shoulders. We stand on their shoulders».

E é isso que sinto de cada vez que revejo os meus camaradas corticeiros, de cada vez que leio notícias sobre a Cristina. Nós andamos sobre os ombros deles. São eles e a sua luta que nos sustentam, que sustentam a nossa luta. São eles que nos carregam. Eles e tantos outros. Invisíveis aos olhos do governo e da propaganda (sim, propaganda) feminista liberal.

Mas como dizia Big Jim Larkin, sindicalista irlandês, the great only appear great because we are on our knees, Let us rise. E quando o povo se levanta é sempre cedo.

*A 9 de Fevereiro a CGTP convocou nova concentração de solidariedade com Cristina Tavares, em Lourosa, Santa Maria da Feira.

4 Comments

  • Nunes

    2 Fevereiro, 2019 às

    O Jose rebola na sua própria loucura.

  • Jose

    1 Fevereiro, 2019 às

    CONTRA O ASSÉDIO MORAL AOS TRABALHADORES!
    CONTRA O ASSÉDIO MORAL AOS PATRÕES!
    CONTRA O ASSÉDIO MORAL…

    • Nunes

      1 Fevereiro, 2019 às

      Contra o assédio doentio de Jose no «Manifesto 74»!

    • alvespimenta

      1 Fevereiro, 2019 às

      Que giro. Também rebolas quando o dono manda?

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