Andam a tentar vender-nos, com muita insistência, a ideia do “deputado da terra” (local), que vai para o parlamento “defender a terra” ou “lutar pelos interesses da terra”. É coisa que não existe. É um logro, uma falácia, uma mentira. É uma táctica eleitoral saloia e desavergonhada, que visa o saque de votos por ingenuidade e ignorância, e não por esclarecimento ou informação do eleitorado. Porque se fosse por esclarecimento ou informação do eleitorado, tais partidos teriam de explicar, devidamente, às populações, o que é que consagra a lei sobre o carácter nacional – e não regional – da representação parlamentar. E, portanto, isto do “nosso deputado” no qual “a terra” deve votar para que ele “nos possa defender”, no âmbito da nossa Constituição, é de tal forma aberrante e manipulador que, enquanto estratégia eleitoral, não se distingue em nada de qualquer outro malabarismo manhoso do Chega ou de André Ventura. É a este papel que PS e PSD se estão a prestar.
Um deputado não tem poder para arranjar caminhos ou estradas, implementar saneamento básico ou para baixar o IMI. A naturalidade ou residência do deputado não o fará romper com a disciplina de voto do partido para beneficiar exclusivamente qualquer projecto feito “na terra” ou “para a terra”. O “deputado da terra” não vai aumentar, nem contribuir para o aumento, de pensões ou de salários miseráveis pagos nas fábricas “da terra” ao votar favoravelmente, no parlamento, orçamentos de estado e outras leis ideologicamente comprometidas com os patrões. Não haverá mais nem melhores serviços do estado por se votar nesse “deputado da terra”, se o partido pelo qual é eleito continuar a fomentar lógicas de interesse privado, parcerias público-privadas, concessões, privatizações de sectores essenciais, etc.
No caso de PS e PSD, em que, contrariamente aos deputados do PCP, não têm o princípio estatutário de ganhar apenas o salário da profissão que tinham antes de serem deputados, não há amor à terra que valha à necessidade de ter bom salário de deputado, de ter boa visibilidade, bons contactos, promessas de futuro e outras principescas regalias. E isso só existe, em primeiro lugar, porque alguém lhes deu o lugar de deputado para tal. É para obedecer ao partido que “o deputado da terra” lá está, não para divergir dele, não para “defender a terra” acima do interesse do partido.
A antiga figura de “deputado da terra”, ou de eleito através de círculos locais, foi extinta por cá no século XIX e ainda bem. A transformação da Assembleia da República numa praça de administradores de quintal, ou de campanário, cada um berrando pelo seu quinhão, cada um puxando a brasa à sua sardinha, além de servir de fomento ao mais nefasto caciquismo seria mais uma porta aberta à corrupção individual, pessoal e política, que alguns tanto dizem agora querer combater. Acabava-se a «representação nacional» e centrava-se a decisão legislativa no polo «dos influentes e poderosos», nos «próximos do governo», relegando «os outros» para a inutilidade, com impacto negativo directo na vida dos eleitores, nas povoações, nas localidades.
O deputado pode ser natural da terra, mas não é um descamisado político, não é um «neutro». O deputado eleito pelo PS vai cumprir o programa do PS. E é assim que deve ser. Por isso a escolha individual não faz qualquer tipo de sentido, tal como não deveria fazer sentido a propaganda fulanizada no nosso quadro constitucional. Mas existe, e existe por má-fé, porque se quer enganar as pessoas. É mais um motivo – e um motivo de peso – para negar imediatamente o voto a quem o faz.