2014

Nacional

Tenho a sensação que caí num mundo onírico desde que o ano começou. Há uma densa névoa ao meu redor há quase quatro dias. Tudo o que vejo são imagens esfumadas num constante ambiente cinzento pontuado por uma ou outra luz amareladas que parecem dançar em pequenos passos, como se fizessem pouco de mim e do mundo.

Se calhar foi porque não comi as passas, ou porque a rolha do espumante teimava em não sair e só brindámos lá pelas 00:03, ou porque não tinha cuecas azuis. Ou serão cuecas novas e azul é outra coisa qualquer? Ou porque não estava em cima de uma cadeira, ou porque me distraí a olhar, desde o outro lado da rua, para os cozinheiros e empregados de mesa da Portugália que saíram para a rua, pela porta do fundo, e tiveram direito a uns breves minutos para celebrar o novo ano. Ou celebrariam o fim do ano velho? Ou repetiam apenas o ritual, sem sentido, em que se passa das 23:59 do dia 31 de Dezembro para as 00:00 do dia 1 de Janeiro?

Tudo começou com o despertar tardio do dia 1. Ainda antes de levantar, dores pelo corpo. Parece que levei porrada, disse para mim. Levantei-me e o chão foi para o tecto e o tecto para o chão. Voltei a deitar-me. Dei-me conta que a órbita dos meus olhos estaria a ser ocupada por seres estranhos, que rapidamente invadiram-me os ouvidos e as têmporas. Provavelmente esses seres estariam em grandes festividades por toda a minha cabeça. Ter-me-ia dado conta ou só nesse momento é que a coisa aconteceu? Não. Já deveria vir de antes. A garganta seca e inflamada e a completa impossibilidade de respirar pelo nariz denunciavam que os malditos aproveitaram-se do facto de eu estar a dormir e zás! Entraram. Tinha frio mas estava quente. Medi a febre, 37,8º. Iupi! Estou oficialmente doente. Estar doente sem febre é como se fosse uma mariquice, um capricho. Sempre que alguém diz “estou doente” leva com a pergunta “tens febre?”. Se não tem é como se fosse apenas um pró-doente, ou um proto-doente, ou um pré-doente, ou um doente honorário. Os doentes por mérito próprio têm que ter febre.

Fico deitada a ouvir (não podia ver porque me pesavam a cabeça e os olhos) um documentário sobre robótica militar. Uma dose condensada e tremendamente assustadora sobre o poderio militar dos EUA. Robôs preparados para matar, preparados para o seek and destroy, já não apenas os drones que voam sobre os céus alheios, disfarçadamente e comandados à distância, para espionar e destruir. São robôs que andam no terreno e fazem reconhecimentos faciais, robôs organizados em grupos e desenvolvendo formas autónomas de cumprir um objectivo, robôs sem discernimento humano, robôs que nunca questionam a cadeia de comando e que dentro do grupo podem gerar a sua própria cadeia de comando. E em caso de crimes de guerra que é responsabilizado? Perguntavam. Em caso de crimes de guerra? Há quanto tempo é que uma guerra perpetrada pelos EUA não é, ela própria, um crime? Que horror. Quanto refinamento tecnológico para dominar os povos! Como é gigantesca a diferença dos meios dos opressores para os dos oprimidos. Meço a febre, 38,4º. E a chuva lá fora, que não pára.

Não consigo almoçar. Fico sentada a olhar para o ovo estrelado e vejo-o enorme. Os noticiários todos dedicam-se a balanços de 2013. Num deles falam dos mortos do ano, dos estrangeiros primeiro e dos nacionais depois. Imagens dos funerais de Chávez, da Thatcher, de Mandela. Apesar dos olhos embaciados consigo distinguir: ruas ocupadas de gente num pranto, uma cerimónia oficial cheia de caras inexpressivas, ruas ocupadas de gente num pranto. Detêm-se longamente a falar de Jorge Mello, das suas muitas empresas, da sua imensa riqueza, muitos números. Nem uma palavra sobre o seu compromisso com o regime fascista, dos favorecimentos de que beneficiou, dos trabalhadores que explorou e que foram reprimidos pelas forças do regime. Meço a febre, 38,8º. E a chuva lá fora não pára.

Mas não tens nada que te faça baixar a febre? Pergunta ele. Acho que tenho aspirina, é tudo. Deve estar na casa-de-banho. Ele procura e não encontra.

As notícias continuam. A Letónia aderiu à moeda única, blá, blá, blá… apenas 20% dos letões são favoráveis à adesão. Assim, sem qualquer sentido crítico, sem desenvolvimento. Mas ninguém questiona onde está a democracia? Porque é que um governo faz o contrário da vontade do seu povo? … Aqui foi igual… ninguém nos perguntou… E bem que reclamámos o referendo! … Aqui é igual, governam contra os trabalhadores. Mais adiante dizem que a Letónia foi um país ocupado pela União Soviética. E pronto, assim, sem mais nada. Foram-se 200 anos de império russo, 100 de ocupação sueca, uns 80 de ocupação polaca e lituana, mais uns tantos de ocupação alemã. E foi-se a ditadura entre 34 e 40 e a ocupação nazi. Meço a febre, 39,3º. E a chuva lá fora não pára.

E aos tropeços fui procurar as apirinas. E encontrei-as. Tomei uma.

21 horas. Fala o Cavaco. Pensei que estaria nos anos 60, que a televisão era a preto e branco e que estava a ver Sua. Excelência, o Presidente do Conselho. De tudo o que disse o homem só retive duas coisas: a, entretanto bastante criticada, noção bafienta do “a bem da nação”, de que a única solução é a do governo e de que quem não está com o governo está contra a pátria, e, a que foi proferida antes disso e que sustenta todo o resto – o governo foi eleito e por isso tem legitimidade para fazer o que entende. ELEITOS COM BASE EM MENTIRAS NÃO TÊM LEGITIMIDADE! Não adianta gritar com a televisão. Meço a febre, 38,5º.

Dia 2. Tenho uma consulta. Perco-me no hospital. Perco-me sempre naquele hospital. Chego atrasada à consulta. Chego sempre atrasada à consulta. Apanho alguma chuva. Hoje não acendo a televisão nem leio notícias. Não quero tristezas, tenho muito que fazer. Passo a tarde e a noite a trabalhar. E passo o dia a espirrar e a assoar-me. Meço a febre, 37,8º. E a chuva lá fora não pára.

Dia 3. Manhã. Quase desmaio a preparar o pequeno-almoço. Acendo a televisão enquanto acabo a encomenda que tenho de entregar. Um programa da manhã dos canais de notícias, daqueles em que “os populares” telefonam dando a sua opinião e a jornalista no estúdio vai passando a palavra ora aos “populares”, ora ao comentador de serviço. Todos falam das medidas anunciadas pelo governo para “suprir” o “chumbo” do Tribunal Constitucional. Não estava a par, no dia anterior não vi televisão. Todos os que telefonam criticam as medidas e dizem que quem deve pagar a dívida é quem roubou os portugueses. No estúdio a opinião é contrária, o comentador parece que nem ouve os telefonemas, traça rasgados elogios ao governo, a jornalista corta o pio aos telefonemas e repreende umas quantas pessoas que lhe disseram que se recusam a entregar facturas. Vou entregar a encomenda. Começa a tosse de cão, continuam os espirros e o ranho. Volto e meço a febre, 37,8º. E a chuva que não pára.

Passo a tarde na cama. Não consigo dormir por causa da tosse. À noite, na televisão continuam a comentar os cortes nas pensões. Discutem se é ou não um imposto. Já não tenho febre, mas entretanto rebentou-se-me o lábio e tosse sacode-me o corpo. Ainda chove.

Dia 4. Acordo com dores no tórax de tanto tossir. Tenho o lábio do dobro do tamanho habitual. Ainda me doem os olhos mas sinto-me muito melhor. Chove como se o céu tivesse pressa em livrar-se da água. As notícias foram todas levadas pela enxurrada, só se fala em tornados e inundações. Temos catástrofes meteorológicas nacionais e estrangeiras.

Ao fim da tarde um rasgo de sol. Já estamos em 2014?