A amizade masculina tem destas coisas. Não se admitem maiores expressões de afecto. É uma espécie de parcimónia permanente, este esforço incessante de ser homem (sê homem pá!). Como se não ser homem, e por consequência ser mulher, fosse algo de adquirido, fácil e aterradoramente insuportável: uma fraqueza de que o homem deve erguer-se, a pulso de prender as lágrimas. Não é só o espírito milenarmente subjugado das mulheres que a sociedade do consumo teima em engavetar em estreitas cofragens. Também o sexo masculino não escapa ao cilindro cultural do capitalismo e, subtilmente, ao nos fazer mais “homens” nos torna menos humanos.
A lei não escrita dos homens (com H muito, muito pequeno) torna-nos ridículos. Impõe um pudor que nos aperta o peito com as cordas lívias da conveniência e impinge um decoro que nos ata ao nosso próprio sofrimento com nós de garganta e coração. Obriga-nos a comunicar por sinais de fumo e através de uma linguagem gestual grotesca da qual só assimilamos as entonações. Torna-nos, como escreveu Saramago, em espantalhos a gesticular através do vidro.
E eis que ali estamos, dois homens crescidos que se conhecem desde sempre, a tentar abreviar esquivos olhares embasbacados até que, por fim, lá acabamos por dizer umas quaisquer banalidades que nos salvem do perigo de dizer o que sentimos. No fundo nós, os homens, ansiamos por um intérprete que, enquanto falamos, traduza estas momices histriónicas para língua franca da nossa amizade. Imaginem como seria se essas palavras abortadas pudessem ser-nos segredadas ao ouvido? Baixinho, claro está, para que ninguém duvidasse de que ainda somos homens quando visse o primeiro sorriso a nascer.
− Epá, claro… então… já sabes, puto… no que precisares! (Não te deixo sofrer sozinho)
− Obrigadão, pá (Gosto muito de ti, sabes?)
− Então puto? Caga nisso, há quantos anos é que nos conhecemos? (Sei. E eu também de ti, meu grande amigo. Tanto como quando tínhamos treze anos e era Agosto e íamos em aventuras juntos)
− Sei lá, pá… quinze, vinte? (Gostava de voltar a ter treze anos, só para voltar a respirar o ar dessas noites de Agosto e abraçar o menino que foste e que, no meu coração, ainda és)
É certo: com intérprete seriam muito mais interessantes as conversas masculinas, mas já sabemos, restam-nos apenas os gestos e, como este narrador não se eleva a supinas alturas emocionalmente, deixo esta simples homenagem aos meus amigos de cromossomas XY.
Ao T. com quem passei milhares de horas da minha infância mais remota a imaginar mundos novos, loucos e sempre mais bonitos. Ao T. que nunca se esqueceu das noites de Verão em que nos deitávamos de barriga para cima na estrada de alcatrão e falávamos sobre o espaço sem pretender mais nada do futuro. Ao T. que passados tantos anos, não se esqueceu da nossa essência profunda e misteriosa que não leva o nosso nome próprio nem a nossa profissão. Ao T., gosto muito de ti, pá.
Ao F. que cresceu numa barraca e me acolhia em sua casa com a dignidade que nunca conheci em nenhum hotel. Ao F. que uma vez foi comigo de carro para as montanhas das Astúrias e, quando nos roubaram o carro enquanto estávamos a tomar banho, teve que fingir uma hipotermia para a ambulância nos vir buscar. Ao F. que já teve que andar à batatada por minha causa, que trabalha 12 horas por dia e às vezes só dorme 2 para ficar a falar comigo. Ao F., gosto muito de ti, pá.
Ao H. que uma vez me ofereceu um papo-seco como prenda de anos e tudo o que comia dizia “venda proibida”. Ao H. que me enviava partes do seu salário de operário para sustentar os meus estágios não-remunerados. Ao H. que nem quando foi pai perdeu aquele brilho de miúdo nem a consciência do que é justo e de que lado da barricada estamos. Ao H., também gosto muito de ti, pá.
Ao F. daquela manhã fria do primeiro dia de aulas da primeira classe, que aprendeu a difícil arte de ser meu amigo e que volvidos vinte anos me pintou, a lápis de cera e canetas de feltro, um desenho para me dar num qualquer aeroporto. Ao F. que não se move por interesses nem por dinheiro e continua a lutar abnegadamente pelo que acredita. Ao F. que, apesar das distância, se reencontra sempre comigo no essencial. Ao F., gosto muito de ti, pá.
Ao B., que se lembra de me ver com uma mochila do Mickey às costas e a quem devo uma parte fundamental da minha formação política. Ao B. que vejo desde que tenho memória, dar tudo, tudo o que tem pela causa dos humilhados e ofendidos. Ao B. que já foi preso comigo pelas melhores razões do mundo. Ao B. que escreve tão bem como eu nunca poderei escrever. Ao B., gosto muito de ti pá.
Ao M. que me faz rir hoje da mesma forma que há 22 anos quando imitávamos o Tarzan. Ao M. cuja imaginação nunca desistiu de nada, mesmo quando tudo à volta parecia morrer. Ao M, que depois de tantos anos sem nos vermos me sorriu como no jardim de infância e me falou com a proximidade de quem nunca esteve longe. Ao M., gosto muito de ti.
Há pouco tempo atrás, assisti enquanto esperava num aeroporto a esta cena: duas amigas (talvez irmãs) reencontraram-se, abraçaram-se e passaram pelo menos dois minutos a dizer uma à outra o quanto se queriam. Também choraram, é certo. Mas não eram lágrimas de fraqueza. Eram lágrimas de uma coragem que os homens não têm.