A paisagem desnorteada da política cultural em Portugal

Nacional

A entrevista de Álvaro Covões ao Jornal de Letras de 22 de Janeiro revela a estratégia dos grupos económicos que o Governo teima em esconder. É importante compreender o que as grandes empresas da organização de eventos pretendem da Arte e da Cultura e em que medida se incompatibiliza com um Serviço Público de Arte e Cultura como o que a Constituição da República Portuguesa estabelece. No título deste artigo, sobrevalorizei o trocadilho em detrimento da justeza e da realidade, pois todos sabemos que o desnorte e a incompetência são apenas a camuflagem com que o Governo esconde o seu programa político de total mercantilização da Cultura que já está em curso desde há muito, quer pelas mãos de PS, quer pelas mãos de PSD e CDS.

A visita ao Museu Nacional de Arte Antiga vale pelas exposições permanentes e pelas várias temporárias que, neste momento, alberga. E nessas incluo, claro, e, apesar de a conhecer já, a exposição temporária sob o tema “a paisagem nórdica do Museu do Prado” que reúne obras de artistas vários e que ilustra com grande dignidade, não só a Escola Holandesa, como a sua evolução e a ligação da pintura à vida e às práticas, percorrendo em poucas telas episódios e tendências várias da evolução dos gostos da burguesia e aristocracia da correspondente era. Mas o que a visita ao MNAA num Domingo de Janeiro também mostra é a quantidade imensa de gente que ali se desloca num dia soalheiro para se plantar frente a telas de pintores cujos nomes até então lhes eram, como a mim, praticamente desconhecidos. O número de visitantes não é parâmetro único de avaliação de qualidade, mas não deixa de ser um indicador capaz de me servir de argumento para o efeito que pretendo através deste artigo.

Uma visita ao MNAA num Domingo de Inverno revela duas evidências que destaco: por um lado, que existe, de facto, um largo conjunto de pessoas interessado na arte e na cultura; por outro, que é possível fazer divulgação eficaz e cativante até sobre um evento que dificilmente se enquadra na definição de entretenimento, como é o caso da colecção “paisagem nórdica”. Apesar de o Governo se preparar certamente para incluir os visitantes da exposição privada “a paisagem nórdica do Museu do Prado” nos visitantes a Museus para desmentir a ideia de que esta política liquida os museus, não deixa de ser importante percepcionar que existe interesse público, assim exista divulgação. Peço tolerância para inserir aqui duas linhas a ligeiro despropósito: o tipo de trabalho e a natureza dos vínculos não deixam de ser matéria relevante, na medida em que a exposição do Prado trouxe ao MNAA um conjunto de jovens contratados à peça, uma espécie de temporários de eventos fornecidos pelas empresas de casting e de figuração que hoje também pululam por aí em nome da arte.

Entre as considerações sobre a entrevista de Álvaro Covões e a organização de eventos de empresas privadas em Museus Nacionais, talvez já o leitor se tenha perdido. Por isso mesmo, retornemos ao primeiro assunto;

Sobre a cultura, a entrevista anuncia logo ao que vem Álvaro Covões com o elucidativo título «Pôr a Cultura a “faturar”» (lamento que a citação me obrigue, para ser exacto, a utilizar a escrita que resulta dessa mutilação que dá pelo nome de Acordo Ortográfico). E quem quer “pôr a Cultura a facturar” também sabe o que precisa para o fazer. E vejamos: o patrão da organização de eventos sabe que a “as artes experimentais são importantes para a Cultura, mas limitadas. É revelador quando se diz que os subsídios devem ir para o que a bilheteira não paga” e quer com isto Álvaro Covões dizer-nos afinal que “quando os pais dão a vida inteira dinheiro aos filhos a probabilidade de se revelarem inúteis é gigantesca.”

É verdade que o homem não se engana e sabe bem que é necessário o investimento no ensino artístico e sabe bem que é fundamental preservar o património. Aliás, o próprio entrevistador Luís Ricardo Duarte, dá ajudinhas preciosas quando diz que “Diz-se que a Direita privilegia o património e que a Esquerda privilegia as artes” para que o entrevistador brilhe, dizendo que “não vejo de que forma um espectáculo experimental pode tornar Portugal um destino diferente. Se Paris não tivesse a Torre Eiffel não teria os visitantes que tem. Sem os Jerónimos e a Torre de Belém, Lisboa não seria o destino apetecível que é. (…)”. Adiante diz mesmo, com parcial razão, que “O Estado deve gerir o Património, em primeiro lugar, pois sem ele deixamos de ser um povo e perdemos a entidade. E, em segundo, apostar forte na educação. Devia haver uma actividade obrigatória ligada à Cultura até ao 12º ano. (…) Fala-se muito em Democracia, mas quando olho para o nosso ensino sinto que se faz de propósito. Que se quer um povo ignorante.”

Álvaro Covões sabe que se pretende um povo ignorante, mas ele não preconiza um mundo diferente. Ele quer apenas uma pequena modificação: um povo ignorante mas cliente de eventos organizados pela sua empresa. Diz-nos mesmo que o modelo a seguir na Cultura é o do Futebol, ou seja, o das escolinhas e da intervenção precoce para detecção e captação de talentos para “intérpretes”. Conjugando as diversas peças do discurso, chegamos à conclusão que Álvaro Covões e, para o que importa, o Governo e os Grupos Económicos, é determinante que o Estado se dedique a preservar património para que as empresas privadas o possam explorar economicamente e que invista na formação de intérpretes e não de criadores, que isso dos “espectáculos experimentais” não acrescenta nada ao país. Isto faz todo o sentido para quem entende a Arte e a Cultura, não como uma expressão plena da humanidade, do indivíduo e do colectivo, mas apenas como uma mercadoria passível de gerar exploração e lucro. O sistema de ensino deve, pois e apenas alimentar as necessidades de mão-de-obra em intérpretes e outros profissionais e o Estado deve assegurar a integridade patrimonial para que se possam lá organizar eventos pomposos.

E eis que, podendo não parecer, é o que temos.

A política do Governo de direita e extrema-direita parlamentar, mas também já a do último Governo PS, assenta essencialmente na organização de eventos como elementos de propaganda que escondem o definhamento do tecido e da produção cultural livre, autónoma e independente. Ignoram, ou não, que a alimentação de uma política que assente única e exclusivamente na “facturação” condena o povo à estagnação cultural. Ignoram que não existiria Torre Eiffel sem artes experimentais, que não existiriam Jerónimos sem artes experimentais, nem tampouco Brueghel, Lorrain ou Rubens, ou Bosch, ou Rembrandt ou Van Dyck. O próprio agente Álvaro Covões refere contraditoriamente Miró como exemplo de desperdício do Estado (referindo-se ao estúpido leilão) e esquece que a arte de Miró foi profundamente experimental. Álvaro Covões e a sua empresa organizam eventos vários e esquecem que nenhuma das bandas que hoje convidam existiria não fosse a persistente teimosia dos que criaram sons de vanguarda no silêncio da monotonia cultural que hoje criam, paradoxalmente, um novo silêncio da monocultura dominante que alimenta um sem fim de clientes mais ou menos conhecedores do universo artístico dominante, aparentemente independente e alternativo.

É a arte que se faz num buraco, sem apoio público, que nos força a aprender e ensinar o gosto. A cultura que nos acrescenta humanidade não se encontra no repertório – igualmente importante – das óperas ou dos festivais de verão. Nem mesmo nos grandes museus da capital. A arte que se faz por génio, por intempestiva criatividade hoje é a que encherá museus e festivais amanhã. E amanhã outras expressões se libertarão nos corações de jovens inquietos, inspirados pelas tecnologias, pelos materiais, e pelo património. Para a exploração que as empresas querem fazer, da arte e das estruturas nacionais como o MNAA, organizando eventos, basta a existência de um património fixo, cristalizado, passível de mercantilizar e converter em entretenimento, mas para o progresso, o património tem além do seu valor intrínseco, um valor potencial extraordinário: o de constituir inspiração para o puzzle da criatividade e da criação.