NINGUÉM CORRE! Esta foi a expressão que aprendi ser dita por qualquer negro de um bairro periférico quando aparece a polícia. Serão já as décadas em que participo em manifestações e jamais me lembro de ter ouvido semelhante expressão. Aliás, ordem: ali, ninguém pode correr. Seja no Pendão, seja no Alto da Cova da Moura, seja no 6 de Maio, seja na Avenida da Liberdade. A negritude dita-lhes a regra: se corres, vão achar que fizeste alguma coisa. Vão apanhar-te, vão levar-te para a esquadra. E a verdade é que, dependendo da esquadra a que fores parar, não saberás exactamente como regressarás a casa.
A diferença é que agora, quando estou ali, são eles que têm que ficar parados. Eu não. Nunca fiquei. O meu privilégio branco dá-me esse luxo. Mas é mais uma regra de sobrevivência à tentativa de criminalização do protesto. Desde cedo, o exercício da minha profissão aproximou-me das múltiplas incompreensões face a atitudes que, a meu ver e, francamente, de acordo com a letra da lei, não fazem corresponder a actuação policial em determinadas situações – protestos, greves, manifestações, paralisações, acções conjuntas com outros órgãos de polícia criminal para verificação “aleatória” de títulos de residência – com os parâmetros e requisitos legais para determinadas actuações.
Há uns anos, li a justificação da necessidade de uma intervenção «mais musculada», numa resposta escrita do Governo de então a um requerimento que solicitava explicações sobre a detenção de estudantes num protesto pelo meio de agressões, face ao seu comportamento que foi, de acordo com as forças policiais, considerado hostil.
Mas durante anos não foi considerado hostil que as mesmas forças tivessem ordens superiores (directas do Ministério da Administração Interna), para bater à porta de estudantes de 16 anos nas vésperas de manifestações alegando que as mesmas precisam de autorização quando a lei é clara: a Constituição, no seu artigo 45º determina que os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização e que todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação.
Apesar disso, o Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de Agosto , apenas determina a necessidade de aviso prévio. Porquê? Tal decreto, anterior à CRP, fá-lo num quadro político em que o direito de manifestação era proibido e, com a revolução da liberdade, o único intuito era garantir a segurança dos próprios manifestantes através do corte de estradas, se necessário, ou desvio de trânsito. O mesmíssimo propósito que ainda hoje serve mas, consoante a vontade de quem governa, tem vindo a servir para cercear e tentar restringir este direito. Sem qualquer sucesso, diga-se. Multiplicam-se, felizmente, os arquivamentos dos processos que acusam os manifestantes de «desobediência civil» caso não exista o não necessário «pedido de autorização» e as decisões de tribunais superiores que esclarecem, a todo o tempo, tal desnecessidade e a prevalência da Constituição. E já estava na altura de ser declarada a inconstitucionalidade destas normas na medida em que, efectivamente, têm impedido o livre direito de reunião e manifestação.
Mas desde o mandato de Rui Pereira, as polícias estão obrigadas a insistir, a identificar, a escrever cada palavra de ordem escrita ou falada[1]. Ninguém escapa. Falhou a lei Edviges à portuguesa e a tentativa de cadastrar qualquer actividade associativa desde os 13, mas não falha o controlo, a repressão, a intimidação.
Intimidação que vai ao ponto, por exemplo, de manter pessoas sem contacto com ninguém até ao limite das seis horas legalmente admitidas, garantindo que dentro de quatro paredes jovens possam ser despidos e ameaçados, sem testemunhas, como aconteceu em 2007, a propósito de uma pintura mural na escola António Arroio, num processo judicial que devassou a vida de 4 jovens e das suas famílias e terminou em arquivamento em 2012, com apenas um processo disciplinar a um agente em toda uma esquadra.
Intimidação que levou ao desaparecimento durante horas de uma activista que perguntava porque apenas paravam cidadãos não brancos na estação do Rossio, em Lisboa, à sua deslocação de esquadra em esquadra, sem que fosse permitida a sua identificação pelas pessoas que estavam consigo, a fim de que o seu nome constasse nos registos da Polícia Judiciária e a avisassem que a partir daquele dia, estaria nos ficheiros (sem qualquer processo, sem qualquer condenação). A queixa contra os polícias seguiu e ela, que perdeu um sapato e esteve desaparecida horas, foi insultada por ter pedido a identificação dos polícias, tinha o corpo coberto de nódoas negras, perdeu. Nem um inquérito disciplinar foi aberto, e o coletivo de juízes entendeu que foi usada a «força estritamente necessária» por 4 agentes, fardados e armados, contra uma jovem de 50 quilos.[2]
Intimidação que levou ao desaparecimento de mais de uma dezena de jovens numa greve geral, quando apanhavam o barco para regressar a casa, e foram impedidos de contactar os seus advogados, enfiados aos 6 em celas onde só cabiam 2, mais uma vez sujeitos a processo crime – arquivado – mas mais uma vez, nem um processo disciplinar ou de averiguações.
Os exemplos multiplicam-se, mas há um que seguramente ficará registado. Bruno, Flávio, Celso, Miguel, Paulo e Rui. 6 jovens detidos ilegalmente e brutalmente espancados numa esquadra, já conhecida pelos seus poucos brandos costumes (aliás, uma agressão dois meses depois do fatídico 5 de fevereiro de 2015 valeu a condenação em 3 anos de pena suspensa a um agente da mesmíssima esquadra), levou à acusação de 17 agentes pela prática de 1 crime de omissão de auxílio, 3 crimes de denúncia caluniosa, 3 crimes de falsidade de testemunho, 5 crimes de falsificação de documento agravado, 17 crimes de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, 28 crimes de injúria agravada, 45 crimes de ofensa à integridade física qualificada e 96 crimes de sequestro agravado, após dois anos de investigação liderada quer por procuradores coordenadores da Comarca de Sintra e Amadora quer pela Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo da Polícia Judiciária. Independentemente do desfecho de tal processo, que se espera coincidente com uma justiça de classe, que sempre puniu os mais pobres e, neste caso, não pode esquecer-se que as vítimas são negras, de bairros periféricos, onde sempre abunda a tal «intervenção musculada», não pode esquecer-se nem os relatos do que ali se passou, nem as suas palavras:
Somos pontapeados e somos – pisavam-nos. Eles pisavam-nos. Eles pisavam e insultavam. Pisavam mesmo, faziam questão de pisar e…. E depois eles gostavam daquilo, eles adoravam, eles ficavam muito felizes…
(…) eles faziam questão de pisar e depois, para eles, eles estavam a gostar daquilo. Estavam a gostar daquilo.
(…) e depois era só pontapés e insultos e aquilo nunca mais… E parecia um inferno e ficou, o nosso sangue ficou no chão…
(…) Depois é que nos levantam, depois de limparem, nos levantam, limpam o sangue e nos colocam naquele banco, mas e nós não podemos levantar a cabeça. E sempre que nós tentávamos levantar a cabeça, diziam — “Baixa a cabeça!”, “Baixa a cabeça, carai, vá lá!” — E sempre naqueles termos.
Nem tão pouco o tratamento a que foram sujeitas, quer as testemunhas oriundas do bairro, algumas delas hoje também vítimas de queixas-crime por «difamação agravada» apresentadas por outros agentes da PSP, que saíram sempre lavadas em lágrimas do tribunal, vexadas e humilhadas pela defesa dos arguidos, sem o tribunal pusesse travão (o que fez com os agentes que testemunharam) e que seguramente, para estas, 15 de fevereiro de 2015 também não acabou por aqui, apesar da esperança que lhes trouxe a Acusação.
Ainda assim, a justiça tem dado sinais de que terá sempre a mão branda com estas questões, sinais a que não escapam as declarações de Margarida Blasco, que insiste em afirmar que não existe violência (o valor registado de queixas por violência e/ou abuso de autoridade no universo global das participações na Inspeção Geral da Administração Interna representa 34,6% das situações apresentadas[3][4]) e do próprio Ministério da tutela.
Afirma o Relatório Anual de Segurança Interna de 2017 que no contexto dos extremismos políticos, a extrema-direita portuguesa continuou a aproximar-se das principais tendências europeias, na luta pela “reconquista” da Europa pelos europeus. (…) No extremo oposto, anarquistas e autónomos nacionais mantiveram a tendência dos últimos anos, investindo sobretudo em atividades de propaganda e de doutrinação ideológica (publicação de jornais, organização de palestras, debates, projeções de filmes, apresentações de livros), por um lado, e no estabelecimento de contactos internacionais, por outro, de forma a aproximar o movimento português da teoria e praxis insurrecionais. No campo da ação direta, para além da participação de alguns militantes portugueses nos protestos violentos contra o G-20 na Alemanha, destacou-se apenas a ocupação de imóveis devolutos no Porto e em Lisboa, enquanto forma de protesto contra o capitalismo (através da constituição de espaços libertados, não sujeitos à designada lógica capitalista).
Aos fatores de risco emergentes das zonas urbanas sensíveis estão associadas dinâmicas de delinquência e de criminalidade por parte dos grupos violentos residentes e comportamentos de resistência contra a autoridade do Estado, principalmente forças de segurança. Continuaram a observar-se tentativas de mobilização por parte de grupos de cariz radical, com o intuito de instrumentalizarem as populações residentes para uma ação em favor dos seus desígnios.[5]
(sublinhado nosso)
Revelando um absoluto desconhecimento dos processos de contestação social, de manifestações absolutamente pacíficas enquadradas na lógica de alguma militância anticapitalista, de grupos informais que agiram na consciencialização das populações (e não instrumentalização!!!!) para os seus direitos e a necessidade da sua defesa, incluindo no quadro da legalidade e do direito constitucional de resistência (que aparentemente todas as autoridades desconhecem), o RASI optou por deliberadamente ignorar o facto de 17 agentes policiais estarem acusados, entre outros, de tortura motivada por ódio racial e agressão à integridade física qualificada, revelando uma deriva perigosa e autoritária de monitorização do protesto e da auto-organização, que veio a intensificar-se e a agravar-se de forma absolutamente inaceitável no RASI de 2018.
Vejamos: Relativamente aos movimentos do espectro oposto [neofascistas], anarquistas e autónomos, também se manteve a tendência antecedente, observando-se sobretudo atividades de propaganda e de doutrinação ideológica, frequentemente com a participação de militantes ou coletivos estrangeiros, alguns dos quais associados aos meios mais radicais e violentos do anarquismo insurrecional. A ação direta ficou praticamente limitada à realização de manifestações em prol da causa curda nos primeiros meses do ano e a ações de protesto anticapitalista relacionadas com o direito à habitação. Alguns setores anarquistas e autónomos, contudo, dedicaram-se com maior intensidade à militância antifascista, juntando-se a coletivos não extremistas na referenciação e denúncia online de militantes e organizações da extrema-direita portuguesa, ou protagonizando alguns atos de vandalismo em locais simbólicos para os seus adversários. No corrente ano, a tensão entre extremistas de direita e os grupos antifascistas agravou-se significativamente, por responsabilidade de ambas as partes, gerando um clima potenciador da violência ideologicamente motivada[6]. (sublinhado nosso)
Ou seja, para o MAI, a resistência antifascista gera violência. Daí que não seja de estranhar que a ordem, apesar de tudo, não se afaste do up against the wall dos anos 60, nos conflitos raciais nos Estados Unidos, ou do envio do Corpo de Intervenção para que aja sobre os trabalhadores de cada vez que há uma greve, defendendo o patronato, sendo certo que os únicos direitos consagrados na Constituição, que fez o seu aniversário a 2 de Abril, são os direitos de manifestação, reunião, greve, resistência. E não o direito de um qualquer patrão obrigar a que a sua empresa funcione ou que uma autoridade pública identifique uma qualquer pessoa que passe na rua.
Quanto a esta última, foram claras as declarações de agentes da PSP, por identificarem um branco no Bairro 6 de Maio na Amadora, por não se enquadrar no perfil racial. «É o que nos ensinam».
Dizia James Baldwin, nem tudo o que é enfrentado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado. E está mais do que na altura de olhar de frente: há um problema de violência policial. É um problema de classe. É um problema racial. E enquanto não for enfrentado, seguramente, tudo mudará para que tudo fique na mesma. E continuaremos a ouvir NINGUÉM CORRE.
Notas:
que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção.
**Imagens ICY and SOT
8 Julho, 2019 às
O que é a "lei Edviges"? Aparentemente não foi aprovada, terá sido uma proposta de "alguém" de apelido Edviges? Quem? Quando? Onde é que posso encontrar referencias sobre isso? (antecipadamente grato … 😉