Derniel Sol

Internacional

Quando oiço a voz de Sérgio Godinho cantar que só quer a vida cheia quem teve a vida parada penso, inevitavelmente, naqueles que não quiseram descansar. A luz intermitente da paragem não me deixava encontrar o poema do Sarrionandia enquanto esperava o último autocarro. Às mãos, chegara-me um papel que dizia que morreu o Areosa Feio e lembrei-me do sentido de pertença. Se é verdade que não se morre quando não terminamos em nós mesmos, também é certo que ‘até sempre’ é a memória colectiva carregada em ombros daqueles que mesmo mortos caminham ao nosso lado.

Já me tinham dito que era irónico que a paragem se chamasse Dernier Sol. Era uma cidade sem vida e até parecia mentira que dali a algumas horas houvesse mãos cheias de trabalhadores rumo ao diário sufoco de uma existência perdida entre a casa e o trabalho. Foi quando os vi passar. Pareciam aqueles piratas que subiam o Mississipi de que falava o último livro que li do Jack London. Assaltavam as casas dos ricos com o seu exército de miseráveis. “Se eu pudesse, fazia amor com a voz da Mavis Staples”, disse o mais alto, com um aspecto desengonçado, enquanto agarrava numa das pegas da grade de cervejas. O outro respondeu-lhe que o Victor Hugo escrevera um dia que o amor abre parênteses enquanto o casamento os fecha. “Uma vez, conheci um trovador cubano que se casou três vezes. Com a mesma mulher”, ripostou o amigo.

Eu estava bêbedo mas vi-os. Eu sei que vi. Eles comentaram que era irónico, creio que usaram essa palavra, que as tivessem bebido todas na noite anterior para que agora as pudessem reutilizar. A sério, eu sei que parece mentira mas aconteceu mesmo. Acredita que foi assim. Eu até pensava que iam só a caminho do vidrão. Houve uma idosa sem-abrigo, aparecida sei lá donde, que lhes pediu um cigarro e disse que para ela mesmo de dia era sempre noite. Passado meia hora, ouvi estilhaços e um enorme clarão. Houve quem achasse que era manhã. Como se todos os despertadores desta merda de cidade estivessem avariados. Só se ouvia o cacarejar dos galos e as gargalhadas da velha enquanto lhe lia Sarrionandia.

“Cada cosa con su dificultad,
a veces dar un beso resulta más difícil
que poner una bomba en el cuartel general del enemigo.
Necesitamos vuestra libertad para poder continuar
juntos haciendo las cosas difíciles.
La búsqueda del cuerpo perdido de nuestro pueblo,
por ejemplo.

Necesitamos vuestra libertad, para que los que estemos libres
seamos libres,
por lo menos
en la medida en que los seres humanos podamos ser libres
con las oscuras y largas cadenas
que tenemos adheridas a nuestra carne.”

1 Comment

  • mid

    22 Junho, 2019 às

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