Cultura é um conceito proeminentemente metafórico, que desliza recorrentemente entre contextos, sobretudo os idealistas e morais, grandemente voláteis, contribuindo para a edificação de uma acepção puramente abstracta ao serviço da hegemonia ideológica do capital. A conceptualização contemporânea da cultura está, quase sempre, desatrelada de uma análise materialista, científica e histórica, promovendo a institucionalização de um anti-conceito que arruína a possibilidade de uma discussão racional. Ademais, tal instrumentalização retira a capacidade de compreensão colectiva sobre algo que nos parece simultaneamente tão próximo e simples como distante e complexo, mas sempre presente na retórica política e social e, sobretudo, determinante na construção burguesa dos itinerários legislativos, reforçando a arduidade da superação do capitalismo.
A impossibilidade de um lugar-comum para a percepção de alguns conceitos, seguramente a cultura, mas também outros, como por exemplo a liberdade, serve um propósito isolacionista que ao invés de criar uma correlação entre a unidade e o universal, entre o indivíduo e o colectivo, cria uma perspectiva de bolha, preferencialmente impermeável, ainda que de forma meramente teórica, afirmando ser esse pequeno espaço, de valores e hábitos culturais, aquele que define a sensação de segurança e familiaridade no tempo e espaço onde quotidianamente nos movemos. Este idealismo de atribuir uma significância mutável mediante o objectivo e de procedência imaterial, não é somente contraproducente no que à análise científica diz respeito, portanto à verdade, como é a redefinição de conceitos em função dos contextos, que promovem em primeiro lugar a manutenção da exploração do homem pelo homem e, pois, do sistema que perpetua tal condição, e, logo, da mercantilização e monetização de todo produto do processo produtivo da humanidade, neste caso do que é tido como cultura.
Porém, não deixemos agora escapulir a oportunidade para um justo juízo que faz desmoronar por terra a teoria da conspiração denominada por marxismo cultural, mesmo que usando um proto-argumentário não muito elaborado, mas que serve o propósito. Isto é, se até aqui tudo é acertado, a crítica que é atirada ao socialismo a que assevera a uniformização do indivíduo através de uma imposição colectiva é de facto de funcionamento inverso, que como referido a abolição da correlação entre a unidade e o universal por parte do sistema opressor, que cria nas sociedades capitalistas o idealismo securitário em redor da pretensa maleabilidade dos pretextos culturais, definindo por normas, regras e leis de como devemos viver, de como nos devemos comportar, do que devemos apreciar, do que devemos consumir, transtrocando a relação da cultura como resultado da produção humana por um conjunto de abstracções isolacionistas que definem a contemporaneidade e o pináculo civilizacional sem contributo do colectivo, entenda-se a humanidade, num processo de uniformização cultural, pensamento único e servil, ainda coercivo e limitador no que toca à liberdade de criação e produção. Nada mais errado.
O estratagema não é fresco, contudo este subterfúgio cultural, digamos assim, logrou na modernidade o seu auge, e, no momento mais frágil da história recente da humanidade, enquadrar e balizar o que é civilizacionalmente adequado ou não, para doutrinar e institucionalizar o racismo, para cavar o abismo entre as sociedades ocidentais e os restantes povos, inferiormente catalogados, sempre sob frágeis, instáveis e esparsos parâmetros culturais, o mesmo sendo repercutido para as relações internas e para as dinâmicas dentro dessas mesmas sociedades classistas, seja de uma forma linear no âmbito da luta de classes, ou no recurso a elementos étnicos ou raciais. Para os mais atentos tal aproveitamento não será uma originalidade, da mesma forma que nem tampouco passou a estar datado no século anterior pela barbárie que tentou encontrar respaldo nessa imoral e desacertada justificativa, mas sentiu a necessidade de prosseguir o seu desenvolvimento e aprofundamento perante a crescente vaga de movimentos revolucionários, que deram os seus contributos e apontaram as soluções para a superação do capitalismo e para a profunda alteração das correlações das forças produtivas, e, para esse enfrentamento, a batalha cultural encontrou um campo fértil, e tão cedo seria decidida a favor dos povos quando tão cedo se compreendesse que o que potencia a consciencialização de classe não é o tipo de tempero na comida, mas a falta desta última no prato.
Retrocedendo, Marx e Engels debruçam-se quanto baste sobre a definição materialista de cultura, complementada a sua visão pela produção pós-marxista, no tempo entenda-se e não na forma. De um prisma mais abrangente o entendimento do seu contributo constrói-se na compreensão de que a cultura é uma criação do Homem, na aquisição contínua de conhecimento e aptidões, portanto as capacidades acumuladas, para enfrentar e subjugar a natureza, primeiramente para lá da sua dimensão social. Numa óptica mais restrita, e mais proveitosa para este texto, o marxismo explica e correlaciona essa edificação histórica da cultura a partir das relações sociais e de produção, base aliás de grande parte da sua obra, em que o contexto dessas correlações e condições concretas em cada momento e espaço, levam em primeira análise à conclusão do estabelecimento das condições de existência e desenvolvimento dos processos denominados culturais e, em segundo lugar, ao definitivo remate que a cultura é senão mais o produto do próprio processo produtivo, em constante acumulação de conhecimento e materialidade, em perfeita coexistência com a filosofia da existência, de onde pode provir, satisfeitas as necessidades básicas, o supérfluo da inquietação, do desassossego, do contentamento ou do amor, de entre outras musas criadoras. Tudo isso para comprovar algo, ainda mais proficiente para o que se pretende explicar, que é o da premente mutabilidade processual da cultura.
Com tudo isto posto por escrito, partimos para a uma aparente contradição da ordem social do capital como agente limitador da produção e desenvolvimento cultural, e de como, circunstancialmente, essa delimitação é usada pela burguesia para, façamos por agora a vontade, preservar valores e hábitos culturais, encapotando um ódio classista neste conjunto de argumentos através de um discurso tido, e propalado, como moderado. Primeiramente, algo que pode gerar concordância, é o aspecto actual e sempre presente da mercantilização e monetização da cultura, que é, aliás, o que constrói o perímetro da incontornável, e agora sim, contradição entre as loas à forjada liberdade individual e o carácter de mercadoria do produto cultural, onde fica ferida de morte o compromisso da significação da cultura que propõe em última instância o crescimento e evolução formal do Homem como um fim em si mesmo, e não como um empreendimento lucrativo.
Porém, nem mesmo o idealismo em redor da cultura, de onde vem circunscrita a visão neoliberal sobre a cultura por oposição ao entendimento materialista, perde em pequeníssimos pontos adesão à realidade, e onde se tocam mais razão sustém à perspectiva do seu aproveitamento económico, político e social, com a sua enviesada concepção. Veja-se, que nesta proposição capitalista, e na sua prática, tanto mais se reforça a necessidade de preservar um modo de vida e, portanto, a suposta hereditariedade cultural de bons costumes, valores e hábitos, em momentos onde se implanta a cíclica crise do próprio sistema, isto é, em momentos de crise económica, social e laboral. Quer isto dizer que está, assim, reafirmada que a concepção materialista da cultura, como antes explanado, está intimamente conectada com a força produtiva, quer no âmbito mais académico e científico, quer até na desengonçada ideia da classe dominante que a usurpa perante a ameaça da alteração das correlações dessas mesmas forças produtivas, que dependendo da encruzilhada histórica em questão tem também origens diversas, e se antes, a título de exemplo, o discurso de preservação cultural encontrou respaldo num ódio que criou a concepção de um inimigo comum na comunidade judaica, nos de roma ou no movimento comunista, hoje tenta (de novo) fazê-lo com as questões da imigração e, sobretudo, alicerçado na sua proveniência, e não será acaso quando se encontram paralelismos nas economias deficitárias em ambos os momentos, razão primeira e última para todo esse artefacto.
E, estando aqui, podemos olhar sucintamente para os períodos de maior estabilidade da ordem social do capital e denotar uma outra conveniente e ideológica contradição. Equiparando esta balança cultural a uma outra económica, tão melhor se entende que importar é tendencionalmente mau a seus olhos, e exportar sedutoramente apetecível, entrando uma vez mais a cultura, e perdoe-se a banalização da sua significação, ao serviço do imperialismo inerente ao capitalismo. Uma transversalidade teocêntrica e etnocêntrica do mundo ocidental, verificável ao longo de várias épocas, dos tempos das cruzadas aos descobrimentos, do colonialismo ao imperialismo, do neocolonialismo ao neo-imperialismo, a ideologia de uma esboçada cultura superior ao serviço do capitalismo, que se propôs e que se propõe a erradicar pelo mundo fora qualquer manifestação cultural de outro povo que se desenvolva em contraposição à ordem mundial estabelecida, sob o falso pretexto civilizacional de progresso e desenvolvimento. Daqui saem duas curiosidades crescidas numa extraordinária indigência intelectual, por um lado a vaga ideia de que a cultura poderá em algum caso ser medida aos palmos, catalogando uma como hierarquicamente melhor do que uma outra segunda, e dessa circunstância a dissonante autoridade moral e civilizacional para a legitimação da exportação cultural (manifestada num domínio económico e político) através de ingerências delineadas e intencionais, que se desencaracola na seguinte tremenda contradição: sociedades que promovem estes processos organizados e o defendem, enquanto rejeitam fluxos migratórios mais ou menos orgânicos e sem a intenção de uma colonização cultural, com a premissa de que estão em causa hábitos, costumes e valores.
Montemos, então, as seguintes questões – às quais esperamos dar resposta – se a cultura é algo que possa (e deva) ser preservado, em primeiro lugar e logo de seguida em que medida é respeitada uma cultura, ou não, pelos integrantes de uma determinada sociedade, sobretudo os provindos do seu exterior.
Marx afirmou que as ideias dominantes em determinada época são essencialmente as ideias da sua classe dominante contemporânea, e daí podemos aferir que essa afirmação tem condições para se alargar para a ideia geral de uma sociedade sobre a cultura, sobretudo em tempos onde a estupidificação de massas é uma ferramenta do sistema capitalista e, portanto, tornando essas concepções ainda mais generalizadas e propagadas, mesmo dentro de sectores mais ou menos intelectualizados, dos quais por regra se esperaria mais sentido crítico e menos concordância e ressonância de certos discursos, não raras vezes fascizantes. Tudo porque não são os valores e hábitos culturais que determinam a cola de uma sociedade, mas sim o estado das relações que se estabelecem entre as classes, que emanam do desequilíbrio das correlações das forças produtivas, isto é, entre a força de trabalho e quem detém os meios de produção.
Se aceitarmos estas condições de que há um total condicionamento do entendimento geral determinado pela classe dominante e de que a cultura não está desatrelada da luta de classes, tão mais perto estaremos de entender as respostas às questões colocadas. Transpondo numa correnteza mais perceptível e, sobretudo, sucinta, estamos em condições de afirmar que, primeiro, não existe tal coisa como preservar uma cultura, pois esta resulta de um processo de acumulação imparável, em constante desenvolvimento, numa soma de conhecimento e materialização por inúmeras manifestações culturais, onde nem a mais isolada das sociedades vivendo na mais isolada das ilhas estaria em condições de garantir a sua imutabilidade cultural. Correlacionando esta primeira réplica à segunda proposta de questão, é o facto de não existir no declarado infamado processo migratório uma sugestão de que estas classes proletarizadas, que se vão fazendo chegar, pretendem imprimir, seja pela força (relembrando processos antagónicos liderados pelo ocidente) nem por uma mera insinuação politizada, os seus nocionais modos de vida nas sociedades ocidentais. Portanto, o que se poderia pretender de forma razoável seria a promoção da integração destas comunidades estrangeiras aquilo que mais se considera adequado num determinado país, com todos os perigos que essa concepção acarreta, mas deixemos por ora passar. É preciso ser aqui claro que uma putativa integração tanto quanto esta se possa considerar numa sociedade democrática seria a sua positividade para quem é integrado – ou seja diminuindo a dificuldade com que pode vender a sua força de trabalho num contexto que lhe é estranho e apresenta desafios e barreiras culturais, porém não existindo materialmente um benefício para quem integra no seu conjunto, é uma consideração absolutamente inócua, a não ser o que pode ser potencializado pela multiculturalidade. Perceba-se, então, que discursos de integração não o são muitas, ou a maior parte, das vezes de facto integracionistas, mas sim revestidos de uma outra intenção: a aculturação, despir os outros dos seus próprios processos, fragilizando-os, despindo-os, seja por uma suposta superioridade ou apenas por medo do desconhecido. Mas se porventura surgir nova demanda se tudo isto pressupõe afirmar que se deve promover processos uniformizadores que agastem todas as subtilidades culturais entre os povos da terra, a resposta é que não, de todo. Tome-se como exemplo o conteúdo legislativo promovido nos princípios da União Soviética sobre essa matéria, a Lei das Nacionalidades de 1924, com o intuito de preservar as unidades nacionais-territoriais, do ponto de vista étnico, religioso ou idiomático, portanto cultural, garantindo a participação de toda a multietnicidade soviética na construção da União, partindo apenas de um ponto comum, e aqui sim, a sua condição de classe. Poderíamos ainda referir outros exemplos que tendem a reafirmar essa orientação, nomeadamente a conscrição limitada a alguns povos soviéticos para o esforço de guerra a partir de 1941, para garantir a diversidade genética e condições de sobrevivência futura desses mesmos povos, um direito humano naturalmente, mas ainda como motores indispensáveis à grande construção do património colectivo que é a cultura humana, como um todo e com a soma do contributo de cada um. Será esta perspectiva e a sua adaptação ao mundo hodierno, como já reflectido anteriormente neste texto, através da consideração e correlação da unidade e o colectivo, o verdadeiro salvo-conduto do património cultural da humanidade. Por fim, o desenvolvimento de todos os processos culturais, da religião à filosofia, da arte à política, do pensamento jurídico à investigação científica, e por arrasto na sua tradução de valores e costumes culturais, estão atrelados à produção económica, sim, mas com a reciprocidade explicada por Engels, também essas esferas actuam não só umas sobre as outras, como todas sobre a económica, vivendo todas comummente sobre aquilo que acabam por elas mesmo plasmar sob o conjunto de leis e regras, seja pela via da constituição vigente ou pelas normas legisladas amiudadamente. Assim se constrói a última das respostas, que o respeito devido à cultura estará salvaguardado pelo conjunto de obrigações legais a que todos estamos sujeitos, imigrantes ou não, e se isso não bastasse, faríamos nós a última das demandas, para entender de que forma ou com que base factual tem sido uma cultura desrespeitada, se porventura há relatos de tais ocorrências, porque não parece factual que haja um assalto aos valores e costumes, um ataque ao património edificado, natural ou imaterial, nem tampouco uma zombaria cultural, ou sequer a ousadia (e que teriam direito) de um contributo meramente opinativo sobre como são conduzidos os – nossos – processos culturais por parte das comunidades migrantes. E uma vez mais, parece que o se pretende não é um respeito, mas antes uma submissão a uma ordem instalada. Que diriam essas almas se tal tentativa decorresse nos inúmeros Little Portugal das mais variadas nações do mundo, onde a integração poderia beneficiar a comunidade portuguesa emigrada, do ponto de vista da sua valorização laboral e social, mas também de participação, contudo pouco às comunidades onde se instalam sob esses mesmos considerandos, em todo o caso uma tentativa de aculturação dessas comunidades lusas seria sempre um atentado aos seus direitos, concordaríamos todos.
Finalmente, se estamos em condições de dar por certo que a cultura não se preserva, partindo então desse definidor princípio de que é uma construção infinda de acumulação do produto e da aquisição e materialização do conhecimento, podemos também concluir acertadamente de que o seu imparável desenvolvimento não se coaduna com o proteccionismo e isolacionismo que finge a sua salvaguarda, mas sim, sobretudo, da forma que o Homem pretender enquadrar esse desenvolvimento, e por inerência a forma como organiza a sociedade, com o contributo de todos que nela se integrem.
Por mais voltas que dêem não há como ultrapassar, ou antes soterrar, a real definição de cultura como processo de desenvolvimento e do seu conteúdo absolutamente instrumental para a superação do capitalismo, assim se reconheça o desafio de a integrar tanto quanto possível na luta de classes e combater a redefinição que a dissocia das relações de produção e a enviesam no seu posicionamento político com o intuito de manter sob o jugo das relações sociais impostas pelo capital, com o recurso circunstancial e não correlacionado a discursos divisionários, via palratórios xenófobos, racistas e fascistas, que mais não é de que um ataque, não com o fundamento da proveniência de cada um, mas às classes trabalhadoras empobrecidas e com intuito de acautelar a sua posição dominante de poder económico e político. A verdade é que só vagabundeará nessas marés, defendendo os donos disto tudo, quem quiser ou quem andar ao engano, preferindo encontrar a hostilidade no camarada trabalhador e não no homem explorador.