É já antiga a tradição política em Portugal de nas épocas de discussão orçamental e outras reformas virem a plenário iniciativas legislativas de pouca relevância e que entretenham a opinião pública, os romanos chamavam-lhe pão e circo e o método atualizado produz efeitos similares, pois que numa semana de tão importantes e negativos desenvolvimentos para o país e os trabalhadores o mediatismo caiu na proibição do uso da burca.
A redundância legal
A lei geral e o texto da Constituição da República Portuguesa têm já resposta às anunciadas preocupações dos promotores e entusiastas coadjuvantes desta iniciativa. É provável que os que tanto apelam à literacia financeira das massas, para sabermos onde investir na bolsa os setecentos e cinquenta euros mensais de rendimento, padeçam de analfabetismo político-legal, pois é crime a subjugação da mulher em qualquer contexto e, portanto, na definição da sua indumentária de igual forma. Seria como criminalizar o homicídio com arma branca, especificando o que na generalidade está já vertido nos textos legais e penais do país. Desta redundância legal se retira o oportunismo político da medida, para efeitos de entretenimento, e o do seu timing adequado à crescente onda populista anti-imigração aumentando a sua eficácia mediática.
A laicidade da República
Não bastasse a delicadeza costumeira de legislar com um fundamento proibitivo, é também preciso sublinhar a manifesta componente religiosa indexada à matéria legislativa em causa. Sabe-se bem que a laicidade tem sido não raras vezes mero acessório republicano, porém e ainda assim é caso para perguntar se haverá lugar a ações de formação das entidades fiscalizadoras para que possam distinguir uma burca de um hábito de uma freira (mais a sério entre a burca, o hijab, o chador ou o niqab) , e se não será mesmo caso para ponderar, partindo desta irrazoável aplicabilidade da laicidade neste e noutros casos, proibir a Igreja Católica, e todas as outras, de impor regras de indumentária a crentes e aos profissionais da sua fé, padres e freiras, bispos e cardeais. Para lá de tudo isto, que corre nas periferias do ridículo, o precedente aberto é, compreensivelmente, perigoso, pois estão agora mais esparsas as linhas para se legislar sobre liberdade individuais e religiosas, num embate com a própria Constituição da República Portuguesa e as suas determinações sobre liberdades e garantias pessoais e liberdades religiosas.
Em defesa das mulheres
Os proponentes, e seus admiráveis coadjuvantes, desta questão vestiram a reluzente armadura em defesa das mulheres, mas só hoje. Às segundas querem retirar ovários a quem aborte, às terças limitar e dificultar o acesso à IGV, às quartas querem ver reduzido os direitos de maternidade (como plasmado no novo pacote laboral, seja nos direitos de amamentação ou de luto gestacional), às quintas desconsideram o diferencial salarial entre homens e mulheres, às sextas acham que meninas de 10 anos, violentadas sexualmente, devem levar a gravidez até ao fim, aos sábados querem sonegar a educação sexual às mulheres e atirá-las de novo para o recato do lar e para os seus papéis “tradicionais”. Isto é, nunca esteve a direita, historicamente, do lado das mulheres, da sua emancipação e valorização individual e coletiva, porém sobra o domingo, o dia do senhor, e desta é que é.
As questões de segurança
Outro elemento desta enxurrada bacoca de argumentos que tem vindo a vir à baila, pasmem-se que inclusivamente por candidatos presidenciais, são questões de segurança. Salta-se acrobaticamente da liberdade individual da mulher para um agarra que é ladrão! ou ladra, que nas regras heteronormativas da cabeça da direita conservadora não se acredita que um ladrão abdicasse da sua “dignidade” de género em desfavor dos méritos da gatunagem, ou quereriam dizer bombistas?! temos a certeza que não, já são machistas que defendem o patriarcado até ao branco do osso, não iam a juntar a isso uma medieval islamofobia. A tudo isto é de pedir, quase, que venha novamente a Polícia Judiciária desmentir as perceções (como o fez mostrando a não correlação entre um “aumento” – que não o era sequer – de criminalidade e a entrada de imigrantes) mostrando números sobre a correlação entre a criminalidade e uso de burca, caso não o faça espera-se que o parlamento rapidamente legisle sobre o uso de gorros, de balaclavas, lenços, echarpes, turbantes e do combo de chapéus e óculos escuros, e no fim desta paródia legislativa se promovam ações de formação a anunciados criminosos para que não incorram em incumprimento na hora de escolher a roupa acertada para o desenvolvimento da sua actividade.
Terminando, quantas mulheres de burca temos visto andar nas ruas das nossas cidades, vilas e aldeias para endereçar tamanho esforço parlamentar a esta questão? Vamos a respostas.
Atirar areia para os olhos
É, praticamente, impossível não pensar que pelo menos com o uso disseminado da burca seria mais difícil, mesmo perante o esgravatador esforço canino da direita parlamentar, não vermos os gravíssimos ataques a que estamos a ser sujeitos neste momento político.
O uso da burca açambarcou estes dias o debate público e político televisionado e para trás ficou o que verdadeiramente importa, do ponto de vista económico, social, laboral e até do ponto de vista democrático. Dois temas absolutamente incontornáveis com consequências práticas na vida quotidiana dos portugueses dispensaram atenções e debate coletivo, por um lado o Orçamento do Estado, por outro o novo Pacote Laboral, que coincidem no agravamento das condições económicas de grande parte dos portugueses para além de encetarem novos caminhos de ataques às liberdades sindicais e nos direitos consagrados das greves. A isto juntam-se as burlas ao erário público das borlas de dois mil milhões com a iterada descida do IRC que beneficia em exclusividade os grandes grupos económicos, ou as proclamações de intenção de cortar cem milhões de euros nas gorduras do Serviço Nacional de Saúde, num SNS desprovido de meios e recursos humanos e técnicos, com serviços e valências cada vez mais centralizados. Ou relembrar que neste dia da discussão do uso da burca se discutiu também a valorização dos profissionais do ensino público, com oposição dos – agora e só agora – paladinos dos direitos das mulheres, e sem consequência política ou visibilidade mediática.
É um autêntico saque, e prossegue este saque e a distribuição de riqueza de baixo de para cima agudiza a crise social, mas cumpre os desígnios político e económico dos donos disto tudo.
Do lado político passou-se ao lado das declarações do presidente do Conselho Europeu, português por sinal, que veio dar a entender que o voto popular na eleição presidencial no país pode ser substituído pelo voto colegial, e em nome, sempre em seu nome, da estabilidade política abrindo portas a uma profunda alteração constitucional. Passou-se ao lado do ressurgimento do vampiro do regime da troika, que não passou ao lado das novas diligências do caso spinumviva do proprietário de cinquenta e cinco imóveis, esperançado de ser uma espécie de Sebastião, o morto-vivo.
Tudo isto não é sobre as mulheres e, assim, distraídos e divididos, prosseguimos na caça às bruxas, em vez de pegarmos fogo ao grande capital.