A consequência Trump, a causa Hillary

Internacional

Está tudo em polvorosa. Trump ganhou as eleições. Nos mercados, sempre racionais, as bolsas começaram a cair mas acalmaram após a declaração do novo presidente dos EUA, que não falou em muros nem bombas nucleares nem em agarrar mulheres pela vagina. Os próximos tempos têm tudo para ser interessantes e há tanto para analisar que não há-de caber neste texto, nem em centenas de outros tantos que vão produzir-se. Nos EUA, a política deixou de ser política e passou a ser espectáculo, há muitos anos. Se é que algum dia a política foi política naqueles estados. Sendo espectáculo, ganhou um show man produzido e adorado pelos media por ser excêntrico. Um grunho, mas um grunho excêntrico, e é isso que vamos todos comendo no quotidiano. O discurso de que os políticos são todos iguais é o que mais vende nos nossos dias, principalmente por cá. Se é verdade que há muitos que o são, há outros tantos ou mais para quem isto é uma comparação injusta. Não é preciso ser “especialista” no que quer que seja para perceber no que dá. Mas todos os dia se dá tempo de antena a gente que não faz mais do que acusar os políticos, essa entidade estranha que ninguém sabe bem quem é, mas que é suficientemente abrangente para sacudir culpas e lançar acusações. Basta ver, por exemplo, a quantidade de personagens “independentes” com ambições políticas que têm vindo a ganhar espaço em todos os espaços, dos media às autarquias.

A nossa superioridade intelectual

Apesar de tudo, estamos confortáveis aqui na Europa. Afinal, somos pobres que acreditamos que qualquer um pode ter um apartamento de meio milhão de euros. E foi também com esta ilusão que Trump ganhou as eleições. Que qualquer um pode ser milionário, a pobreza é apenas um tempo intermédio até lá chegarmos. Estamos confortáveis, sim. No fim de contas, não somos sírios, não somos iraquianos, libaneses, iemenitas, não fomos afectados pela beleza da Primavera Árabe que levou um caos ainda maior àquela região do globo, não sofremos com o golpe no Brasil e com a desestabilização da América Latina, que continua a ser vista como a casa de putas dos interesses dos EUA.Claro que para nós é um choque. Estamos aqui sentados a ver tudo nos smartphones, enquanto meio mundo explorado tenta chegar ao meio mundo explorador para fugir à morte. E este é também o legado de Hillary fora dos EUA. Agora, como sucedeu com o Brexit, vamos só achar que são burros e esquecer os motivos e as causas dessa burrice. Porque nós somos tão inteligentes. Nós, que elegemos Cavaco quatro vezes.

O espectáculo

Vivemos na era da enformação. Papamos tudo desde crianças, sem questionar. Só sabemos que é assim porque é assim e nunca poderia ser de outra forma. Vamos pegar no exemplo de canais de televisão vistos, essencialmente, por jovens. A MTV deixou de ser um canal de música para ser um canal de reality shows. A SIC Radical tem na sua programação espaços em que transmite reality shows sobre empresas de reboques, cozinhas, tatuagens, uma família que vive do negócio da pornografia. Curiosamente, foi também na SIC Radical que pudemos conhecer melhor Trump, já que transmitiu O Aprendiz, onde era possível assistir ao despedimento de pessoas. Entretenimento. Só para dar alguns exemplos e sem entrar nas generalistas e em canais que em tempos foram de informação e formação, mas que, hoje, transmitem reality shows a partir de cadeias dos EUA, sobre a caça ao ouro e a vida dos traficantes. É isto que estamos a comer todos os dias, a todas as horas. Mas, já sabemos, os americanos é que são estúpidos. Nem nos apercebemos que estamos a ficar tão estúpidos como eles. Quem nunca se riu, afinal, daqueles inquéritos aos norte-americanos em que não sabem identificar países nem oceanos e mais além?

Género e raça

A onda de esperança que atravessou o globo com a eleição de Obama, só não se esvaiu imediatamente a seguir porque, lá está, também ele se transformou numa estrela. Estamos a falar de alguém que chegou à presidência dos EUA e recebeu um Nobel da Paz mas que deixou o país envolvido em mais conflitos do que quando tomou posse. Ao seu lado estava Hillary. Nesse tempo, aumentou a desigualdade entre ricos e pobres, a desigualdade salarial, a desigualdade de género e, pasme-se, também a racial. Nos últimos anos, aliás, assistimos a uma tensão crescente entre a comunidade negra e as forças policiais. Mas Obama continua a ser, para nós, o que podemos chamar de um gajo porreiro. Até dança em programas e faz vídeos engraçados para o YouTube. A ter havido votos que Hillary perdeu por ser mulher, foram residuais. O problema do capitalismo não é de género ou de raça, é do sistema; ainda que mulheres e não-brancos possam ser mais afectados por ele. Mas essa é uma condição do capitalismo.

Trump? Impossível.

Quando Trump anunciou que seria candidato pelos republicanos, poucos acreditaram. E muitos, do alto da sua superioridade intelectual, ridicularizaram o pré-candidato. No entanto, Trump começou a ganhar estado atrás de estado. Mas, para alguns especialistas e analistas, faltava sempre um estado que era impossível ganhar. Não faltou. Quando foi nomeado o candidato republicano, Hillary ia trucidá-lo. Hillary perdeu. Mas perderam também as sondagens, como já havia sucedido com o Brexit. Talvez seja altura de começarmos a questionar para que servem, afinal, as sondagens, se não para serem mais um elemento de condicionamento das escolhas.

A consequência

Acredito que Trump não será a causa de coisa alguma. Trump é uma consequência de tudo o que foi e não foi dito atrás. Trump é também uma consequência do que foi Hillary na sua vida política. Trump é um produto do sistema e não creio que vá ser tão louco como foi durante a campanha. O novo presidente não é uma ameaça para o sistema, é um produto dele. E o que poderá acontecer, no máximo, é a troca do establishment do sistema por outros actores. O sistema eleitoral, político e económico dos EUA segue vivo e de boa saúde, para gáudio de quem vive muito bem às custas dele.