A «erradicação da fome» e a fome de revolução

Internacional

Estamos no ano da graça do senhor de 2016 e há 800 milhões de seres humanos a morrer de fome. É esta a principal conclusão do Relatório de Desenvolvimento Sustentável da ONU agora apresentado e que passou completamente ao lado da nossa comunicação social. Antes, porém, de prosseguirmos é mister refazer esta pergunta gasta e tantas vezes repasta nas bocas dos comunistas: como é possível que sejamos capazes de fotografar exoplanetas nos confins da imensa e opaca treva interestelar, e encontremos formas de levantar o véu que oculta o mistério da massa e a origem de todas as coisas, e consigamos reprogramar e fazer células para dobrar a própria natureza humana, e possamos tudo e tanta coisa, epigenomas, água em Marte, máquinas em asteróides… e ainda assim, em desafio a tudo isto, não sejamos, enquanto espécie, capazes de conseguir algo tão ofensivamente elementar como evitar que uma em cada oito das nossas crianças não passe fome?

Em 1992, ainda o cadáver da URSS não tinha arrefecido, e a ONU propunha-se «erradicar a pobreza» com um cardápio de (alegadas) boas intenções que responde pelo nome de Agenda 21. Com a inexorável viragem para o século XXI, a pobreza continuava por erradicar e os autores da Agenda 21 tiveram que reconhecer que colocar «21» no nome fora algo prematuro. Então, alargaram o prazo para «erradicar a pobreza» e, no ano 2000, surgiram os Objectivos do Milénio. Agora é que era a sério: até 2015, a fome e a pobreza estariam «erradicadas». O dinheiro jorrava dos países ricos para os países pobres, atingindo, em 2010, o recorde de 130 mil milhões de dólares; batalhões de voluntários inscreviam-se para dar aulas ou distribuir sacas de arroz no terceiro mundo a contar do nosso; o Bono dos U2 era a «pessoa do ano» da revista Time que, aliás avisadamente, exaltava a «filantropia de fusão» do cantor; virava-se uma pedra em qualquer país pobre e lá estava uma ONG a «erradicar a pobreza»; até George W. Bush se junto ao folguedo, reforçando generosamente a posição dos EUA como o maior doador do mundo em ajuda humanitária.

Ou seja, a solução é sermos todos médicos e engenheiros de software ou, por outras palavras, «o capitalismo só funciona na teoria».

Quando, em 2015, caducou o prazo sem que a pobreza desse sinais de se tencionar erradicar a curto prazo, a ONU deu corda ao relógio e atirou o prazo para 2030, com os, novíssimos, «Objectivos de Desenvolvimento Sustentável», no quadro dos quais agora se verifica que em 2030, por este ritmo, a teimosa da pobreza extrema estará tudo menos erradicada. Há, em termos globais, uma ligeira redução da miséria no mundo que, no entanto, segundo o relatório, «se deve, em 80%, ao Sudeste asiático», com destaque para a China, para a Índia e para o Vietname.

Para compreendermos por que razão falham todas as tentativas internacionais de «erradicar a pobreza», basta pensarmos nesta curiosa expressão, mais comum no jargão médico que nas ciências sociais. Para a ideologia que sustenta os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, é conveniente retratar a fome como uma doença epidémica que deve ser erradicada porque não interessa a ninguém. Desta forma, a miséria seria uma espécie de acidente natural pelo qual ninguém tem culpa e, simultaneamente, uma culpa de todos.

O problema é que se dependesse da inteligência, da ciência e da tecnologia há séculos que não haveria fome no mundo. A pobreza extrema não só tem causas objectivas como só pode ser explicada no quando de um sistema económico que lucra com ela e depende dela. É, portanto, perfeitamente natural que os interessados nesta fome tão lucrativa não queiram que nenhum relatório revele o segredo e mate a alma do negócio. O resultado é um gigantesco edifício teórico construído sobre fabulações.

O presente relatório é um exemplo claro da contradição que balda qualquer esforço de «erradicar a pobreza». Em 153 páginas dedicadas à pobreza no mundo, a palavra «salário» surge duas vezes, ambas num contexto alheio à ligação entre aquilo que os trabalhadores ganham e a forma como vivem.

Então, como é que a ONU quer acabar com a miséria? Melhorando as infra-estruturas, apostando na inovação, investindo na ciência, melhorando os hábitos de higiene… tudo menos o essencial. O relatório dá alguns exemplos: «provas empíricas demonstram que o desenvolvimento está associado à mudança de trabalho de baixa produtividade para alta produtividade e para actividades bem remuneradas». Ou seja, a solução é sermos todos médicos e engenheiros de software ou, por outras palavras, «o capitalismo só funciona na teoria».

De resto, nem uma palavra sobre as verdadeiras causas da miséria: a exploração desenfreada de quem trabalha; a privatização de recursos e serviços necessários às populações; a assinatura de acordos comerciais pró-monopolistas ou a ausência de direitos…

Vivemos num mundo capaz de produzir infinitamente mais quantidade de tudo o que precisamos para satisfazer as necessidades básicas de toda a humanidade. Neste contexto, o ritmo das descobertas científicas e a dimensão dos avanços tecnológicos só tornam as crescentes desigualdades sociais mais monstruosas. Envergonham, até. Por outro lado, a persistência da fome e da miséria mais horrenda não é um erro, mas um mero corolário da actual fase de desenvolvimento do capitalismo. Mas mais do que pôr em evidência de que o capitalismo não consegue matar a fome, o que demonstra o falhanço dos sucessivos programas internacionais para «erradicar a pobreza e a fome» é a impossibilidade de resolver os grandes problemas do capitalismo pela via das reformas. A superação revolucionária do capitalismo é, por conseguinte, o único caminho.