A propósito de um certo “Avante!”

Nacional

Imagina que passavas a tua vida inteira num quarto isolado sem qualquer contacto com o exterior. Imagina que a esse quarto, chegava um só jornal e tinhas acesso a um só canal de televisão. Imagina que se quisesses ver cinema só podias escolher entre 5 filmes. Livros também eram só 5. E a realidade? Melhor, e a tua percepção da realidade?

Não vives num quarto isolado das outras pessoas. Conversas, deslocas-te consoante as tuas possibilidades, até és capaz de atravessar oceanos, por mar ou por ar, lês os livros que te apetece ler, vais ao cinema ou pelo menos vês filmes em casa, vais ao teatro (vais?), tens acesso a cada vez mais canais de televisão e passas horas a ser bombardeado com informação nesses canais, nas bancas de jornais, na internet, na internet e na internet. Mesmo quando não te apercebes ela está lá, bem à frente dos olhos, de forma mais ou menos explícita.

E a realidade? Melhor, e a tua percepção da realidade? A realidade que vês será mesmo a realidade que te rodeia? Apercebes-te dos filtros que a turvam de formas mais ou menos descaradas?
Imagina agora que és adolescente, aí com uns 13 ou 14 anos, naquele idade boa em que deixas de ser uma esponja e começas a definir, ou pelo menos a perceber, aquilo em que acreditas, a aprimorar o teu sentido do certo e do errado. Ainda melhor, a entender que o certo e o errado são conceitos ocos, construções das minorias que detêm um poder, seja ele qual for.

És adolescente e todos os dias te fazem crer que sujeito ou sujeita X é o/a anti-cristo e quer destruir a organização social do mundo, do teu mundo de felicidade. Mas depois alguém te diz que X é que está certo. Não acreditas, mas decides parar para pensar. Decides ir ler um livro escrito por X, decides ir a um debate onde está X, decides ir a uma manifestação onde vai X. Agora que viste, leste e pensaste com os teus olhos e com a tua cabeça, percebes que X tem alguma razão, ou até toda. No entanto, a televisão, os jornais, os livros que te vendem no supermercado, os engravatados e as engravatadas continuam a dizer-te que X é ruim, que X quer generalizar a pobreza dos teus. Mas tu já percebeste que a pobreza dos teus foi gerada pelos engravatados e pelas engravatadas. E agora?

Agora és um adulto, e já sabes que “isto anda tudo ligado”, que “os jornais e as televisões estão comprados”, que “não vale a pena acreditar em metade do que se lá lê e vê”. E agora que já não és adolescente e que o teu tempo se esfuma cada vez mais rápido, agora que “não tens tempo para nada”, repetes estes mantras até que eles ficam tão gastos. Mas tão gastos, tão gastos que já ninguém está para te aturar. Chamam-te “Calimero”, “queixinhas”, “chato”.
E a verdade é que te tornaste chato, a verdade é que a tua reacção primeira é fazeres queixinhas do bombardeamento informativo deturpado quando alguma coisa não corre como queres, a verdade é que a tua casca de Calimero já se partiu de podre e já não tens mais nenhuma protecção contra as marretadas que te dão nos miolos e que se calhar até mereces.

Há 85 anos, um colectivo de pessoas decidiu contrariar todas estas dificuldades. Perceberam uma coisa muito simples, se a imprensa é privada e vive de dinheiros privados e com interesses maiores do que é possível imaginar, porque raio se há-de esperar dessa imprensa isenção, honradez e obrigatoriedade de algo tão simples como o contraditório? “E o código deontológico da profissão?” Urtigas com ele, digo-te eu, no final do dia quem decide o que te chega a casa não são os que recebem salário, são os tais engravatados e engravatadas que lhes pagam o salário.

Esse colectivo decidiu então fazer o seu jornal, passar a sua informação, o seu ponto de vista, e decidiu fazê-lo e distribuí-lo há 85 anos, quando qualquer X que pensasse de forma diferente certamente teria problemas sérios. Esse colectivo fundou um jornal que nos chega até hoje e que continuamos a chamar de “Avante!”, assim mesmo, com um ponto de exclamação tão assertivo quanto a certeza das suas convicções. Tão assertivo como as vidas que se prenderam ou se perderam simplesmente para que ele chegasse a mais uma pessoa.

Estamos em 2016. X está na tua cabeça, seja quem seja X para ti. A imprensa pertence a cada vez menos pessoas, a cada vez menos empresas e ainda perdes tempo a indignar-te com a sua falta de imparcialidade? E quando lês o “Avante!” estás à espera que ele seja imparcial? Porque raio é que a imprensa e o teu “Avante!” haveriam de ser imparciais? São pensados e criados por pessoas ou colectivos com ideias e interesses próprios, existem para cumprir um papel. E agora, cruzamos os braços?

Agora, a única e difícil solução é contrariares quem constantemente tenta fazer X desaparecer. Tal como há 85 anos, é necessário que cries suportes e conteúdos informativos de diferentes escalas para chegar de outra forma às pessoas, para lhes mostrar e explicar os reversos da medalha. É preciso que cries suportes e conteúdos e que ajudes a renovar os que já foram criados e funcionam. E olha que agora é bem mais fácil do que há 85 anos, não me estás a ler?…

No mundo ideal, as jornalistas e os jornalistas teriam as ferramentas para serem imparciais, detalhados, interessados. No mundo ideal os jornais não deixavam de contratar revisores de texto, não havia erros ortográficos nem de sintaxe e as pessoas da televisão teriam a gramática na ponta da língua. Mas já percebeste que essa coisa do mundo ideal é uma balela e também já percebeste que quando existir essa imprensa isenta e socialmente comprometida, o mundo que agora conheces e os poderes que o controlam deixam imediatamente de existir, ou para lá caminharão.

Avante, então, mete as mãos e faz a obra!

* Autor Convidado
André Albuquerque