A superioridade curricular de Varela, Raquel

Nacional

«Lisboa, uma cidade à venda», poderia bem ser o título deste post. Como o poderia ser «o avanço da gentrificação nas grandes cidades» ou mesmo um pequeno texto sobre como as políticas municipais e nacionais estão a transformar as cidades num espaço apenas acessível a elites económicas, expulsando do seu centro quem desde sempre o habitou por não terem condições para permanecer nestes espaços, agora de elite.

Mesmo a transformação do Martim Moniz numa celebração da sua multiculturalidade demonstrou-se um projecto que apenas afastou essa mesma multiculturalidade, atraindo apenas as carteiras que podem pagam seis euros por uma bebida «típica» de uma qualquer zona do mundo ali retratada.

Desde sempre, as capitais e as chamadas «cidades cosmopolitas» fizeram do mosaico cultural o seu cartão de visita: o facto de numa mesma cidade se encontrarem várias regiões do país e várias nacionalidades foi e é, historicamente, um motivo de valorização dos espaços urbanos, da cultura, da partilha do conhecimento. Por cá, também herança histórica de um povo que sempre emigrou, buscando vidas melhores, misturando-se nas outras culturas e formas de estar em todos os continentes. Essa mistura está-nos escrita a sangue e suor precisamente porque ciclicamente somos forçados a sair do nosso país procurando trabalho, melhores salários, a possibilidade de uma vida com dignidade. Não valerá a pena, certamente, repetir os números da emigração, as idades de quem emigra, os nomes, o que deixam para trás, porque todos nós conhecemos alguém que recentemente ou na altura do fascismo o fez.

Essas mesmas pessoas que encontraram em alguns dos países para onde foram (por exemplo, França), a resistência xenófoba de quem não quer estrangeiros a roubar postos de trabalho. De quem não quer que venham para cá os pobres tirar o pouco que temos. De quem os ghettizou em bairros sociais porque são cidadãos de terceira ou quarta, ou mesmo de quem tentou, várias vezes, impor leis que proibam a imigração.

Também cá, vemos tanta gente obrigada a sair da sua aldeia, vila ou cidade, deixar a família e trabalhar em Lisboa. Estes de quem pouco se fala mas que estão a várias centenas de quilómetros da sua vida, a várias dezenas de euros que os impedem de ver a sua família e amigos quando sentem saudades e que têm que ir para Lisboa por ser o único sítio onde encontram um trabalho, juntamente com rendas altíssimas e uma grande dificuldade em acabar cada mês.

Não é, portanto, com espanto, que leio uma reputada «historiadora» da nossa praça a tecer comentários que desta vez envergonham até a burguesia intelectual (mesmo a de direita). Para quem não leu, é importante que leia atentamente:

«Pensar Lisboa -O que menos gosta em Lisboa?
Raquel Varela – Da invasão de turistas, hostels, fast food, mercearias asiáticas, lojas de chineses, do iva e da lei das rendas. Não é racismo, qualquer dia Lisboa tem tudo menos Lisboetas, que são expulsos para os subúrbios.
Pensar Lisboa -O que mudava em Lisboa?
Raquel Varela – O IVA e a lei das rendas para proteger as tascas e a economia familiar e os habitantes locais.»

Isto não foi uma entrevista telefónica. Não apanharam a «historiadora» na rua para que dissesse umas coisas sobre Lisboa. Foi escrito, pensado e está a circular. Num momento em que é demasiado fértil o terreno para os fenómenos tão bem aproveitados – historicamente – da culpabilização de etnias, nacionalidades, cores de pele pela situação política e social.

Repare-se, a resposta poderia ter sido: as políticas municipais que tornam bairros típicos da cidade em bairros apenas acessíveis a quem tem poder económico, os salários cada vez mais baixos em que as pessoas são obrigadas a deixar os sítios onde sempre viveram porque não podem pagar mais a sua casa. Podia ter sido como Lisboa se tornou numa cidade à venda por mão dos negócios do Vereador Salgado e do Presidente Costa. Ou mesmo uma teorização sobre a gentrificação.

Não, a resposta foi clara: mercearias asiáticas, lojas de chineses, tem tudo menos Lisboetas (com L maiúsculo), mudava os habitantes locais.

Se a «historiadora» acha que pode dar lições de luta anti-racista porque foi aí, aos 16 anos que começou e já tem um currículo de várias dezenas de páginas, talvez pudesse ter aprendido alguma coisa com essa história de luta. E, na verdade, aprendeu. E escolheu o seu lado.