Outubro

Internacional

Era um vez, há muito, muito tempo atrás, um país onde quem ordenava era o povo. Pode parecer impossível, mas nessa terra distante, os teatros eram gratuitos, só se trabalhava sete horas, os estudantes eram pagos para continuar a estudar e quando alguém ficava doente, havia hospitais onde não se pedia dinheiro nem seguros de saúde.

Mas esse mundo desapareceu: os teatros voltaram a ser caros, voltou a trabalhar-se doze horas por dia, os estudantes passaram a ter que se endividar para poder estudar, os hospitais voltaram a ser um privilégio dos ricos e nós, passada a vertigem bárbara dos anos noventa, voltámos a debruçarmo-nos como arqueólogos sobre as ruínas engolidas pela selva do dinheiro, querendo saber tudo sobre esse tempo, como nasceu, como viveu e como morreu.

Ledo e ufano, o novo velho regime dança hoje sobre a campa soviética, mas nervoso, vá se lá saber porquê, tem que revistar os transeuntes, inspeccionar as casas, destapar os balaios e partir as tulhas à procura… à procura de qualquer coisa. Porque passados quase cem anos, renasce entre a juventude uma fascinação pelo país dos sovietes, as suas conquistas, as suas promessas, os seus erros também.

Os jovens comunistas, nascidos muito depois de 74 nesta nova idade das trevas sem estradas, nem luzes nem direitos, olhamos os vestígios ofuscados, como medievos a redescobrir o legado dos romanos. Mas afinal, o que sobrou? O invólucro oco e morto? A casca inofensiva que vida abandonou? Em 2014, sob cem toneladas de anos enterrada, a Revolução de Outubro nunca foi tão perigosa, inspiradora e cortante, porque cortada a árvore e arrancadas as raízes, sobraram as sementes, pequeninas e caladas, aninhadas no coração das mulheres e dos homens que só vivem do seu labor. Desde o trágico fim da década de oitenta que guardámos essa semente, com os cuidados maternais de quem protege um recém-nascido prematuro. E hoje, aqui e ali, já medra um tímido rebentozinho… na Venezuela, na Bolívia, em Cuba e na maré de lutas que vem inundando o nosso mundo.

Não. De Outubro, não guardamos filatelias nem liturgias vãs, mas a brusca valentia de se levantar um povo lacerado pelas injustiças acumuladas de séculos ao relento, de misérias várias e humilhações maiores. De Outubro guardamos as sementes. Guardamos o chouto firme dos cavalos a irromper pelos palácios poeirentos dos senhores. Guardamos as caras dos homens nas fotografias a preto e branco, crispadas de frio, moídas do cansaço antigo e incurável de trabalhar o tempo todo; guardamos os sorrisos embrutecidos pela vida e, mesmo assim, apesar de tudo e malgrado o resto, engalanados da esperança de controlar o destino das suas vidas; de ser seu o fruto que as suas mãos cultivam.

De Outubro lembramos o génio de Lenine, que soube dessoterrar da crosta bruta as galerias naturais de uma raiva mil anos acumulada de geração em geração e de lágrima em lágrima. De Lenine, guardamos a palavras simples e claras, sem arquitecturas esdrúxulas, que não albergam a pretensão de descer aos operários nem subir aos intelectuais. E a sua voz, em que continua a ressoar o eco do trisso vesperal da primavera, fala-nos não do passado mas do presente: de “expandir a democracia milhares de vezes” através da ditadura do proletariado, tornando tudo democrático, incluindo a gestão das empresas, dos bancos, dos campos e da propriedade. Lenine, o chefe de Estado que ia para o trabalho a pé, o génio de cujas mãos medraram 50 milhões de palavras escritas que e todos os dias recebia operários que lhe estendiam mãos grosseiras com o jeito da enxada.

Lenine, o estratega do primeiro Estado operário, viveu, vive e viverá.

As sementes de Outubro, há que lançá-las à terra. A URSS foi o país onde, segundo a UNESCO se viam mais filmes e se liam mais livros. A Revolução de 1917 pôs fim à inflação, à discriminação racial e à pobreza extrema. A esperança média de vida duplicou e a mortalidade infantil caiu 90%. Segundo a UNESCO, nunca uma sociedade tinha elevado tanto o nível de vida da população em tão pouco tempo. Em apenas 20 anos o país dos sovietes atingiu o pleno emprego. Os soviéticos tinham direito a um mês de férias inteiramente pagas. As mulheres tinham direito a 20 meses de licença de maternidade paga por inteiro. A renda da casa representava 2% do orçamento familiar e os serviços básicos 4%. As famílias soviéticas assinavam em média quatro publicações periódicas, o número de visitantes de museus representava metade da população e a frequência de teatros ultrapassava o seu total.

Apuremos os ouvidos para o rumor das ruas: é a idade das trevas que rosna o derradeiro e brutal estertor. É o próximo renascimento da História humana que a agonia do capitalismo anuncia, sob o signo da foice e do martelo e no serôdio estio de Outubro.