Aborto: pelo direito a decidir, nem um passo atrás

Nacional

Era dia 20 de Dezembro e este Manifesto deu conta do impensável. Até esta data a campainha não soava a rebate. Talvez por serem comunistas a avisarem. Talvez porque o Governo cria tantas distracções que coisas destas vão passando. Talvez porque não se olha o suficiente para o Estado Espanhol para perceber até onde vai a barbárie, que, de resto, não espera por notícias de blogues para passar fronteiras.

A verdade é que pelo meio de tanto pão e circo, os direitos humanos entram numa espiral de retrocesso que não pára.

Dia 1 de Fevereiro partiu das Astúrias rumo a Madrid o comboio da Liberdade  para exigir a Rajoy a retirada da Ley Gallardón. Nesse mesmo dia a embaixada espanhola recusou-se a receber pela manhã uma delegação do Movimento Democrático de Mulheres que dirigia um protesto e repúdio pela criminalização das mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez. Nesse mesmo dia, juntaram-se à manifestação da CGTP dezenas de manifestantes solidários com as mulheres do Estado Espanhol na sua luta contra a lei e no dia 8 uma nova concentração decorreu diante da embaixada, em Lisboa.

Esta lei espanhola quer condenar as mulheres a serem encarceradas pelo exercício de um direito. Malta, Chile, El Salvador, Nicarágua e República Dominicana são os únicos países onde a IVG está totalmente proibida. O Estado Espanhol quer integrar esta lista, recuando à sua legislação de 1985, proibindo a interrupção da gravidez mesmo em caso de malformação do feto. (repito o que escrevi em Dezembro).

Não será demais relembrar a eterna caça a mulheres pensantes. As «bruxas», as «libertárias», as que não podiam votar (quais iron jawed angels*), as negras, as domésticas, as que não podiam estudar, as que não tinham direito ao planeamento familiar (e ainda o não têm), as que são mutiladas, as apedrejadas, as adúlteras. Todas serão Hipátia de Alexandria, a primeira matemática (que também leccionava filosofia e astronomia), condenada à morte pelos cristãos por alegada conspiração contra Orestes e o Bispo de Alexandria. A sua morte, sentenciada por homens e executada por estes, a par de uma multidão enfurecida, que, com conchas, arrancaram a sua carne, pedaço por pedaço, até chegar ao osso (a propósito de Hipátia*), sendo deixado o seu corpo no meio da rua para que fosse visto por todos. Que atrevimento pensar, decidir e lutar!

Por cá, a luta foi mais do que dura, esta da despenalização da IVG. Já na clandestinidade lutavam as mulheres comunistas e o MDM por esta causa, tendo o movimento enviado uma carta ao MFA fazendo constar dela o planeamento familiar e a despenalização da IVG como reivindicação. Em 1982, o PCP, numa iniciativa arrojada, propõe a despenalização da IVG na Assembleia da República (iniciativa que foi rejeitada aquando da sua discussão em 1984) e o direito à educação sexual e ao planeamento familiar, que originou a Lei n.º 3/84 (hoje revogada mas mantido o seu texto original e os direitos ali previstos).

Em 1940, na sua tese de fim de curso, Álvaro Cunhal, defende a IVG afirmando: «Persistindo as causas, a repressão não consegue atenuar o mal e o número de abortos não cessa de aumentar.», a repressão é «juridicamente ineficaz e socialmente condenável».

Estivemos à porta de tribunais enquanto eram julgadas mulheres, em Aveiro. Estivemos em Setúbal enquanto a deputada comunista Odete Santos defendia mais uma mulher sujeita a um processo crime e a um julgamento.

Sempre dissemos que direitos humanos não se referendam.

Nunca virámos a cara à luta em 98. Voltámos em 2007, sem nunca ter saído das ruas, sem nunca deixar cair esta exigência.

Porque é uma questão de dignidade, de identidade, de direitos. Trata-se de uma questão de saúde pública, de política criminal, mas e acima de tudo, de direitos fundamentais. Todos têm o direito a decidir sobre o momento e o número de filhos que querem ter. E quando uma mulher decide, tem o direito de recorrer ao aborto em condições de saúde e sem que sobre ela impenda um juízo de criminalidade ou a ameaça de prisão. O que aqui conseguimos, todos os que lutámos incansavelmente – a mulher decide, a sociedade respeita e o Estado garante, como afirmava o Em Movimento pelo Sim, deve ser atentamente defendido, todos os dias.

A direita não esconde o seu incómodo com o cumprimento, exercício e garantia dos direitos fundamentais. Que nenhum de nós esconda o incómodo perante os crimes, esses sim, que a direita comete. Nem um passo atrás. Nem um passo atrás.

Reparei agora que passam hoje sete anos do Referendo à Despenalização da IVG. Pelas 23 horas, a 11 de Fevereiro de 2007, ganhava o SIM.