«J. – Achas que valia alguma coisa dar a vida pelo país?
L. – Hipoteticamente?
J. – Não, não, agora.
L. – Queres imolar-te ou assim?
J. – Ou uma greve de fome.
L. – Não, isso é parvo. Faz mais sentido continuares a fazer o que fazes. Vejo mais hipótese de transformação.
J. – Mas eu não me reconheço nisto. Não consigo. Não me reconheço nestas histórias. Não se pode viver assim».
Se isto fosse uma série ou um filme, agora existiria um plano de corte e voltávamos atrás na conversa. Este seria o teaser do episódio e agora o narrador e as protagonistas demonstravam como se chegou até aqui. Mas neste caso seria impossível porque levaria anos a explicar.
Ficar-me-ei pelo copo de vinho e a conversa no sítio do costume que conduziu a este diálogo absurdo. Porque é de absurdez que se trata.
Contando histórias sobre o dia a dia, falámos da nossa amiga que chegou a casa dos seus pais num fim de semana, depois de contar muito bem o dinheiro da conta-ordenado para dar para pagar o autocarro. Os pais nunca tiveram carro e ela demora cerca de meia hora a chegar a casa, a pé, depois da paragem. E contou que um dia ia carregada e estava irritada com o caminho que fazia e saiu-lhe um «5 anos de curso superior, 2 de mestrado, trabalho há 13 anos e nem a porcaria de um carro velho posso comprar porque não tenho dinheiro para o pagar.».
Para troca ela conta-me a história da amiga dela, mãe solteira, que recebe 700 euros por mês como administrativa e tem um doutoramento. E que lhe disse que não sabia do que lhe tinha valido nada porque não tinha onde cair morta. Literalmente, nem sequer tem dinheiro (nem a família) para pagar o funeral (a preços correntes ronda os 2000 e muitos euros e a Segurança Social paga 1256 euros vários meses depois, quando não anos, dependendo do centro distrital).
E ela diz-me que não aguenta viver num país assim. Uma sociedade que aceita isto como normal. Que o fomenta. Que, apesar da muita luta e mobilizações que existem todos os dias, metade da sociedade vê esta – esta – vida passar.
É, de facto, muito frustrante olhar em redor e ver a nossa família, os nossos amigos, ver-nos ao espelho e ter que lutar, diariamente, com o facto de não saber se este mês dá para ir «a casa», se dá para ir ter aquela consulta (já nem falo do cinema ou de jantar fora, isso deixou de acontecer há cerca de 3 anos), a definhar porque não se encontra no SNS ou no sistema público de Segurança Social um tratamento adequado para o pai ou a mãe que já não podem estar sozinhos e um lar não pode ser opção (por motivos emocionais e por motivos financeiros, simplesmente não é), que não podem comprar as fraldas de incontinência dos avós porque são caras então compram pensos (exactamente o que escrevi, dão para mais dias e são mais baratos), vão ao especialista com o filho mas deixam de comprar, nesse mês, os iogurtes de que ele gosta para comprarem uns mais baratos e já não vão eles ao médico porque não dá para tudo.
No meu país eu ia ao dentista quando era miúda, sempre que precisava. A minha mãe, sozinha, pagava a renda de casa, a roupa, a escola, para mim e para a minha irmã. Trabalhava muitas horas, não havia sequer leitor de vídeo mas francamente só me apercebi disso anos mais tarde (que isso era sequer uma coisa que era suposto existir em todas as casas). Ia ao médico e detestava, mas estava sempre doente da garganta, tinha que ser.
Hoje, se por acaso fico com uma amigdalite a primeira coisa que faço? Contas. Um dos meus melhores amigos todos os meses conta quantas prestações faltam para pagar a dívida à Segurança Social. Outros contam os meses para o fim do subsídio de desemprego e foram já a 40 entrevistas. Outros ficam felizes porque finalmente conseguiram um trabalho no callcenter (o tal melhor do que nada) enquanto lutam para conseguir coisas na área dos seus… mestrados. E a infelicidade percorre-lhes a voz ao fim do dia quando querem ir beber um café e discutir política. Ou melhor, precisam de ir beber um café e discutir política. Todos os meses aumenta o número de pessoas que tem que deixar a sua família e amigos para ir trabalhar a 300 quilómetros (ou mais) numa cidade onde não conhecem nada nem ninguém. Pessoas que não se conhecem dividem casa até aos 40 porque não podem pagar o «luxo» de viver sozinho. Comum a todos? Contas, contas, contas.
«J.- A minha vida não é assim. As coisas correm-me bem, eu sou privilegiada.
L.- E vais pedir desculpa, a seguir?
J. – Não. Mas é quase um peso que carrego. Como se não pudesse ser assim. Nada me distingue de todos os outros e a vida da maioria das pessoas é esta.
L.- Pois. Mas lutamos. Juntas.
J.- Sim.
L.- Sim. »
Mais um episódio do dia a dia. Que urge transformar. Urge. Porque é mesmo verdade, não se pode viver assim. Não pode. E por isso mesmo é que é preciso, todos os dias, lutar para transformar as margens que comprimem o rio, porque essas sim, são violentas. O rio, que tudo arraste. Até que nada dessas margens subsista.