“Agarrem-me senão vou-me a eles!”

Nacional

É comovente ouvir António Costa, o Primeiro-Ministro de um país periférico, dar aquela chazada de peito cheio ao ministro da Holanda. É assim uma espécie de bálsamo patriótico, mas ao mesmo tempo placebo. Eleva a moral mas não faz nada. Pesem as diferenças notórias de estilo entre Costa e Passos Coelho, a grande diferença é que um pedia de joelhos e o outro faz aquele número do “agarrem-me senão vou-me eles” enquanto estende os braços para que alguém o agarre. É um bluff arriscado, e tem o seu valor por isso.Ora, vir este Costa, Primeiro-Ministro de um país periférico enfiado na Comunidade Económica Europeia, depois na União Económica e Monetária, depois na União Europeia, e de um dos Partidos autores do enterramento do país nesse lodaçal, agora fingir dar lições de moral sobre o dito “projecto europeu” mais não é do que continuar o papel de sempre de branqueamento do tal “projecto europeu”. O “projecto europeu” é um projecto de mercado e de união política – ao contrário do que dizem os fundamentalistas do federalismo – e esse projecto está integralmente arquitectado e produz os efeitos previstos desde o primeiro momento. Só não está inteiramente construído porque persistem direitos dos trabalhadores, pequenas empresas não inseridas nas fileiras do monopolismo, pequena agricultura e pesca e outras actividades de lógica não inteiramente liberal e capitalista. Mas o avanço que a UE impõe, nomeadamente através das orientações do dito “projecto”, é no sentido da liquidação dos direitos e da produção nos países periféricos do Euros e da UE, para a sua concentração nas mãos dos principais accionistas dos monopólios transnacionais, que, por sua vez, utilizam como principal instrumento político, alguns dos estados do eixo central da União Europeia.

Alemanha, Holanda, Áustria, França são apenas os veículos políticos da vontade dos grandes grupos que dominam economicamente uma importante região da Europa. A concentração de poder e de recursos nesses países pode aparentemente beneficiar aqui e ali os seus próprios trabalhadores, mas em última análise coloca-os a disputar as migalhas (mesmo em comparação com os portugueses, por exemplo) que caem das praças financeiras e do gigantesco sistema financeiro que estende o seu domínio a todas as actividades.

Ora, Costa sabe tão bem quanto eu que o “projecto europeu” não tem leis de solidariedade, não tem mecanismos de unidade e de partilha popular, não tem circuitos de mercado para produtos dos modos de produção não capitalistas, não tem espaço para a legislação laboral determinada pelo sindicato, não tem espaço para a intervenção estatal a não ser que para salvar monopólios, financeiros e não financeiros.

Costa faz parte e é honrado herdeiro dessa linhagem de coveiros que se abrigou no PS desde 1974 e que em conluio com PSD e CDS sempre venderam aos portugueses um veneno embalado com um rótulo de cura milagrosa. E fizeram-no deliberada e ardilosamente. Evitaram o debate público, intoxicaram-nos com a ideia de que era estar dentro ou condenados à miséria, chegaram a colocar a entrada na CEE como parte do projecto de Abril, iludindo os portugueses com essa falsa ideia de esperança. Só há um “projecto europeu”, o “projecto capitalista” e mais nenhum. Aliás, União Europeia é só o nome pomposo que “capitalismo” arranjou para angariar simpatias numa região do globo inspirada pelas conquistas dos trabalhadores a leste e colocada entre as duas grandes potências mundiais – EUA e URSS.

A pergunta da jornalista é abjecta, a resposta de Costa é demagogia em estado puro. O sentimento que tive ao ouvir Costa apelidar de repugnantes as declarações do ministro holandês foi “eh lá!, ganda Costa!” Mas depois percebi que não era muito diferente daquela cena do Bolsonaro na Alemanha a dizer “a amazónia é nossa!”. É a exaltação demagógica do patrioteirismo. Costa fez de polícia bom para que a UE possa fazer de polícia má.

Não é altura de disputar o campo da demagogia inútil, nem de dizer que Bruxelas se conquista com afronta e coragem. É altura de denunciar a natureza do verdadeiro projecto europeu. Àqueles que acham, e muita malta acha, que “é uma pena que a União Europeia se tenha desviado dos seus objectivos iniciais”, estes são os seus objectivos iniciais!

A resposta da União Europeia a esta crise, ainda que possa vir a ser concertada e planificada no plano da saúde pública, será sempre no sentido de salvaguardar os interesses da classe que a domina: a grande burguesia. As medidas desta União não podem ser outras, caso contrário, esta seria outra União. Mitigar os efeitos da crise será, como estamos já a ver, a injecção de capitais na banca, o estímulo à economia pela falsificação do valor. A União Europeia está disponível para injectar o que for necessário nas economias (leia-se banca), segundo a Presidente da Comissão. Está até disposta a ignorar os constrangimentos orçamentais.

O que significa isso, na prática? Significa que serão constituídas linhas de financiamento através da banca para que a banca possa alimentar as necessidades de consumo no plano do retalho e alimentar as necessidades da capitalização das grandes empresas no plano do investimento. Ao mesmo tempo, significa que os bolsos públicos poderão financiar o exército industrial de reserva que alastra a pretexto da crise, poderão financiar com a segurança social os salários dos trabalhadores em situação de lay-off, para que estes possam continuar a consumir o stock e a produção em desaceleração que esta crise provoca. O capitalismo está a aproveitar esta pandemia para fazer um reboot, para compensar a sobreprodução e as bolhas especulativas, com a manutenção de um nível de consumo mínimo, mas cada vez mais concentrado nos grandes grupos económicos. As pequenas empresas falirão em pouco tempo, o desemprego aumenta. Terra queimada. Sobre ela e sobre nós marcharão os monopólios, com a bandeira da União Europeia como estandarte.

Esperar que essa bandeira cumpra outro papel é dispormo-nos a ser a sua carne para canhão e Costa está a arregimentar-nos para esse papel ao branquear o verdadeiro carácter do “projecto europeu”.
Neste momento, qualquer confronto com União Europeia não pode ter outra intenção senão o de desmascarar a sua natureza e os seus reais impactos. Qualquer confronto que passe pela ilusão de que existe uma outra União Europeia, esquecida mas passível de ser ressuscitada, é apenas constituir mais um balão de oxigénio para que a verdadeira, a que existe, continue a ser a superestrutura de exploração em massa que é. É o que é. O resto é conversa.

Só a recuperação da soberania produtiva, económica, monetária e política, em harmonia com os restantes povos do mundo, e rompendo com o domínio do grande capital, pode responder à actual crise para que não saíamos dela ainda pior do que aquilo que a pandemia nos impõe. Só estaremos em condições de defender os trabalhadores se as estruturas de poder não forem subordinadas a nenhum directório, mas com democracia, local e nacional. Sair da crise económica e financeira provocada pelo capitalismo e exposta pela pandemia será tanto mais difícil quanto mais permitirmos que a resolução da crise fique nas mãos de quem a criou.

7 Comments

  • Jose

    31 Março, 2020 às

    'Eleva a moral' ?

    A pedinchice eleva a moral?…só falta chamar-lhe patriótica!

  • Nunes

    30 Março, 2020 às

    Estou de acordo com o texto.

  • joao pedro

    30 Março, 2020 às

    Inteiramente de acordo, caro Nozes Pires

  • José Augusto Nozes Pires

    30 Março, 2020 às

    A seguir a estes dois comentários de caca (o primeiro deles vem de uma besta qualquer), manifesto o meu completo acordo com o teu texto. O direito à estupidez é irrevogável, mas à verdade também.

  • Augusto

    30 Março, 2020 às

    Pois eu prefiro o Costa do " repugnante" do que o Passos de chapeu estendido a prestar vassalagem á Merkel. Pode ser demagogia, mas pelo menos por uma vez, foi capaz de responder á letra. Quanto ao resto , meu caro Miguel Tiago é pura propaganda, e neste momento exige-se um pouco mais de responsabilidade aos militantes do PCP.

    • Nunes

      30 Março, 2020 às

      Mais responsabilidade? Ou será que quer dizer subserviência?

  • Margem Sul

    29 Março, 2020 às

    Todo este testamento por causa de uma unica palavra, " repugnante " ? Ladainha do ser prwso por ter cão e não ter cão, se fica-se calado era porque metia a viola no saco e enfiava o politicamente correcto entre as pernas . É claro que farias melhor, resolvidas não só os problemas de Portugal, do mundo como fas civilizações extraterrestres da galáxia. Crlh para os demagogos .

Comments are closed.