Marcelo, uma vez mais, não se conteve. Aliás, Marcelo nunca se contém. O seu conservadorismo, a sua idiossincrasia, o peso da formatação rígida de outros tempos há-de sempre sobrepor-se ao dever institucional. A sua fé, as suas paixões, os seus ídolos, tudo isso legítimo, mas tudo isso muito inapropriado e muito desenquadrado quando se é investido num papel para o qual se teve tempo e mais que tempo para se preparar. Pode considerar-se pura e insignificante minudência o gesto reverencial de Marcelo perante a rainha do Reino Unido e retratado pelas câmaras fotográficas de todo o mundo. Contudo, e especialmente no que diz respeito a Marcelo Rebelo de Sousa, por vezes é bem mais substancial e revelador um gesto, por simples que seja, do que o débito de um chorrilho de palavras a um qualquer microfone ou câmara de televisão.
A rainha de Inglaterra fez o seu papel. O Presidente da República Portuguesa ainda não percebeu qual é o seu.
Não é necessário fazer-se nenhum exercício aprofundado de semiótica. Para entender o mais evidente significado de vénia e beija-mão de um chefe de estado para com outro(a) chefe de estado, basta ter a mínima noção do que é que, ao longo de séculos, representou tal gesto e que condições sociais ali estiveram sempre presentes ou representadas. Quem beijava, quem era beijado. Quem se erguia, quem se curvava. Quem era o soberano, quem era o súbdito. Hoje, como há seiscentos anos, surge-nos a auto-assunção de superioridade “natural” de um, perante a imposta mas mansamente auto-aceite inferioridade de outro. A rainha de Inglaterra fez o seu papel. O Presidente da República Portuguesa ainda não percebeu qual é o seu.
Poder-me-ão dizer, como me disseram, foi cumprimento protocolar. Não colhe. Primeiro porque como se sabe a rainha já recebeu e já foi recebida por muitos chefes de estado que não se prestaram a tal papel. Além do mais, tratando-se especificamente de Marcelo, essa hipótese pura e simplesmente não pode colher. Não é ele, afinal, o homem que quebra protocolos e que, aliás, até colhe louros e simpatias por tais “ousadias”? Não são as quebras protocolares de Marcelo que fazem as delícias da imprensa e não são as suas “selfies” ou danças mais ou menos anedóticas que lhe dão pontos de popularidade?
É evidente que de vénias está a República Portuguesa cheia. Fizeram-se vénias históricas e mansas durante décadas ao jugo da alta finança. Beijou-se consecutivamente, governo atrás de governo, presidente atrás de presidente, a mão ao chicote que nos foi dilacerando o lombo. Quis-se ser tapete de interesses poderosos na esperança da queda de umas quantas migalhas no regaço e sempre com os resultados que se conhecem. Sempre sem sair da cepa torta. Sim, vénias houve muitas e beija-mãos também. Não é por isso, todavia, que se deve ignorar esse comportamento quando ele existe e é de menor monta ou menor impacto na vida de qualquer cidadão. Quem não se sente não é filho de boa gente. E para mim uma humilhação é-o sempre, independentemente do tamanho. Não há “pequena coisa” quando se trata de honra e dignidade. E esta foi mais uma humilhação de Marcelo ao cargo e à República que diz representar. Esta foi mais uma humilhação a Portugal e aos portugueses.