Basta de privilégios!

Nacional

As importações no que à política diz respeito dão geralmente resultados enviesados. A adaptação mecânica de conceitos, por mais moda que se tenham tornado no contexto em que foram formados, nem sempre se adequa a um contexto mais geral de forma directa. A acrescentar a essa necessidade de questionar o esquematismo do uso de conceitos, coloca-se uma questão ainda mais fundamental que se relaciona com o significado do conceito e a sua utilidade para cada fim. Por exemplo, para simplificar: os conceitos de “classe baixa, média e alta” são perfeitamente passíveis de serem definidos em função de um nível de rendimento mas praticamente inúteis para qualquer aplicação política transformadora. Já o conceito de “classe social”, por exemplo, é igualmente passível de ser definido – até de forma mais perene e absoluta – e é indispensável para uma aplicação política transformadora.

Os conceitos não estão desligados do contexto em que surgem, da ideologia de que brotam e da utilidade que o seu fundador tem, bem como da utilidade que, uma vez apropriado por um mais largo número de pessoas, pode vir a adquirir. 

Quando se trata a política na perspectiva da ideologia dominante, as abordagens são feitas quase sempre numa abordagem idealista, muitas vezes quase metafísica, partindo da absolutização de conceitos, sem qualquer relação com uma metodologia materialista. Quando, pelo contrário, se reflecte a política numa perspectiva revolucionária, com recurso ao marxismo, a abordagem torna-se necessariamente materialista e dialéctica. Tais instrumentos do pensamento são incompatíveis e geram clivagens de raciocínio e, muitas vezes de posicionamento político, profundas e quase insanáveis entre os que utilizam o materialismo como ferramenta e os que usam a absorção da visão dominante.

Em muitos casos, os conceitos e visões dominantes impõem-se de tal forma que se tornam realidades em si mesmos, absolutizam-se e cristalizam, relegando todas as restantes posições para lugares rapidamente catalogados. O capitalismo tem sido muito eficaz na manipulação e criação de conceitos que lhe sirvam a ambição de continuidade e de fascização do poder. O capitalismo é, tal como o comunismo, um modelo económico e político, mas também um projecto, um processo. E, na medida em que o comunismo enquanto processo é todo o movimento que se vive já e todo o projecto de luta e de nova sociedade futura, também o capitalismo é o que é hoje e um processo de desenvolvimento contínuo.

O capitalismo na sua fase imperialista precisa dos instrumentos de poder do fascismo. O idealismo, a metafísica e a absolutização de conceitos são ferramentas muito úteis para a cultura do ódio, para o divisionismo e a quebra da unidade entre camadas exploradas, para a legitimação de poderes através de conceitos entretanto sacralizados.

Vejamos a palavra “privilégio”:

“1. Direito ou vantagem concedido a alguém, com exclusão de outros.
2. Título ou diploma com que se consegue essa vantagem.
3. Bem ou coisa a que poucos têm acesso.
4. Permissão especial.
5. Imunidade, prerrogativa.
6. Qualidade ou característica especial, geralmente positiva.”

“privilégio”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 

Este conceito tem vindo a ser introduzido com força no léxico de uma suposta esquerda progressista. No entanto, atentemos ao impacto material que a aplicação deste conceito tem. Numa perspectiva política, para um revolucionário, os privilégios caracterizam as classes dominantes. Aliás, o seu étimo é precisamente esse e o privilegiu – do latim – significa  “lei para um”, utilizado como forma de distinguir soberanos de súbditos.

É aliás, pela perda de privilégios que lutamos e pela generalização de direitos. Por exemplo: eu tenho o direito a andar na rua sem ser insultado ou espancado. Esse direito não pode ser visto como um privilégio porque um privilégio é algo a que urge pôr fim e um direito é algo que urge alargar. Ora, se um negro pode (principalmente se for pobre) realmente ser sujeito a situações de preconceito, de ódio e de violência, isso não pode significar em nenhum momento que o branco é privilegiado porque esse raciocínio conduzir-nos-ia à conclusão de que o fim dos privilégios consistiria em ambos serem espancados. 

Da mesma forma, não se pode dizer que existe um privilégio masculino porque uma mulher ganha menos ou porque a mulher corre riscos de violação muito superiores aos que corre um homem. Nesse caso, não se pode considerar privilégio o direito de andar na rua sem ser violado, nem se pode considerar privilégio receber um salário superior, na medida em que não se pretende retirar nenhum desses direitos ao homem, mas sim assegurá-los à mulher.

Além disso, não está ao alcance do suposto privilegiado abdicar do seu privilégio, nem pode ser isso que se pretende. Mas não deixa de nivelar por baixo a utilização do conceito “privilégio”. Se eu tenho um privilégio por receber mais como homem, abdicando desse “privilégio” e ganhando o mesmo que a mulher, acaba-se o privilégio? Ou, pelo contrário, concentra-se e aprofunda-se o real privilégio das classes dominantes?

A utilização do conceito de privilégio, que parece estar ainda quase cingida àqueles que, pretendendo-se progressistas, integram as camadas do proletariado mais distantes do processo produtivo, cumpre um papel social e político. Por um lado, tal como outros refúgios, serve de uma espécie de expiação dos complexos de culpa da moral judaico-cristã que enforma uma boa parte de um proletariado mais afastado do processo produtivo e de uma “pequena burguesia democrática”; por outro, hostiliza aqueles que de forma alguma se reconhecerão como privilegiados num mundo em que são diariamente explorados, afastando-os de uma perspectiva de solidariedade de classe e de combate a todas as discriminações.

Um operário que ganha o salário mínimo nacional, homem, branco, não vai reconhecer-se como privilegiado por ter direitos básicos enquanto outros, por qualquer motivo não os têm. A luta e a solidariedade de classe são aqui os mais poderosos instrumentos de alargamento dos direitos, muito mais do que a abdicação de privilégios. Ou seja, o operário não pode abdicar do tal “privilégio” que lhe é atribuído pela banalização desse conceito. A cristalização em torno desses conceitos importados, muitos deles provenientes dos meios académicos da dita “esquerda americana”, relega todos os que se recusam a adoptá-los para o canto dos ultrapassados, dos machistas, dos racistas, dos conservadores, etc., contribuindo activamente para acantonar visões, dividir onde se devia unir. A ostracização a que são sujeitos todos os revolucionários e revolucionárias que não acatam acriticamente as teses burguesas do “feminismo liberal” é bem ilustrativa do impacto negativo que as intrusões do pensamento e ideologia burgueses têm no movimento progressista.

Podemos relembrar a forma como em Portugal muitos pretenderam tratar os trabalhadores com vínculo como privilegiados, remetendo a exploração para uma classe acabadinha de inventar e rotulada de “precariado”. O que essa estratégia provocou foi a divisão da classe trabalhadora entre trabalhadores e trabalhadores privilegiados. Ora, se o contrato é um privilégio, então a precariedade é a norma. Assim se fez, retirou-se o privilégio a centenas de milhares e generalizou-se a precariedade. Numa perspectiva da eliminação do privilégio, estamos hoje melhores!

Colocar em causa termos como “género”, “privilégio branco”, “liberdade de prostituição”, entre muitos outros, e sua utilidade numa perspectiva revolucionária é hoje visto pelos seus adeptos como uma manifestação de incompatibilidade, não raras vezes redundando no insulto, na segregação e na divisão das lutas e dos seus protagonistas.

A barreira parece mais ténue e menos identificável, mas na realidade é cada vez mais evidente e profunda. A barreira entre o pensamento dos comunistas, dos revolucionários e de outros que, consciente ou inconscientemente, fazem o trabalho das classes dominantes entre os dominados.

É chamando o homem para a luta da mulher, o branco para luta do negro, o hétero para a luta do gay e não chamando a uns privilegiados e a outros coitados que a luta vai triunfar. Hostilizar uns em suposta defesa de outros, prejudica todos e poupa os verdadeiros privilegiados, os que nos seus tronos riem enquanto os súbditos se insultam.