Com o que sonha o Cristiano Ronaldo?

Nacional

Cristiano Ronaldo não sonha, certamente, com comprar o carro ou a casa que sempre quis. Pode ficar assegurado o leitor: o sonho do  melhor jogador de futebol do mundo não é nada material. Ao contrário do que se possa achar, Cristiano Ronaldo não sonha com milhões de euros, mulheres bonitas nem ilhas privadas. Estamos em condições de afirmar com segurança que o CR7 já tem todas as copas, ligas, campeonatos, botas de ouro e bolas de ouro que poderia desejar.

Será que quando Cristiano Ronaldo chega a casa se põe a ler Kafka, sentado num sofá de 50 mil euros, enquanto mastiga o fel das inquietudes filosóficas sobre o absurdo da existência?

E mesmo sendo abstracto o sonho que o move, não é por isso algo mais comum: podemos também assegurar o leitor de que Ronaldo já tem todo o reconhecimento, fama e adoração possíveis de concentrar na auto-estima de um único ser humano. Não lhe faltará, por outro lado, liberdade: Cristiano Ronaldo já é, individualmente, mais livre de fazer no mundo tudo o que lhe couber no tempo que ainda lhe sobra. Faltar-lhe-á naturalmente a privacidade, mas também não é esse o sonho de Cristiano Ronaldo.

Com o que sonha, então, um homem que já é infinitamente rico, idolatrado, bonito, bom naquilo que faz, livre, saudável e jovem?

Pode parecer uma pergunta estúpida mas, se se prestar atenção, já somos obrigados a conhecer tantos e tão irrelevantes detalhes sobre a vida de Cristiano Ronaldo que mais vale debruçarmo-nos sobre o que realmente importa.

Agora o leitor pode até rir-se, mas é provável que Cristiano Ronaldo sonhe ser imortal. Nada de mais: apenas um sonho à escala da vida que leva. Talvez por isso lhe parecerá tão desproporcional a você, que mora no terceiro andar de um prédio e guarda cupões de descontos mas, lá está, o leitor também não tem museus e estátuas dedicados à sua vida.

Mas Cristiano Ronaldo seguramente saberá que nunca será imortal. Eis a contradição: a divindade com prazo de validade. Será que quando Cristiano Ronaldo chega a casa se põe a ler Kafka sentado num sofá de 50 mil euros, enquanto mastiga o fel das inquietudes filosóficas sobre o absurdo da existência? Ou será que, pelo contrário, mete no máximo o Wizkid, que está em primeiro lugar do Top+, enquanto bebe o melhor champanhe do mercado e vê os melhores desenhos animados do mercado na melhor televisão do mercado?

Seria simples se o português mais famoso do mundo fosse só esta caricatura, edonista de bolas e átomos, mas Cristiano Ronaldo no fundo é tão humano como nós e, para complicar as coisas, assume publicamente, causas justas e sonhos normais. «Quero ser o melhor pai do mundo», disse recentemente numa entrevista. O problema aqui não é não só que Cristiano Ronaldo parte com uma enorme vantagem sobre todos os outros pais na corrida ao título de melhor pai do mundo; o problema é que o melhor pai do mundo não aceitaria um mundo tão injusto para os outros pais; o problema é que não é possível ser um bom pai, olhando com indiferença para os filhos dos outros.

E escusa de me recordar quantos milhões doou Cristiano Ronaldo a que causas. Não está aqui em causa a bondade de Cristiano Ronaldo nem a utilidade de distribuir a caridade em sacos de restos, entrançando harmoniosamente o biscoito ético com a reprodução da própria injustiça.

Mas afinal qual é o teu problema com o CR7?

Nenhum. O meu problema é convencermos a nossa juventude a querer ser como o Cristiano Ronaldo e a emular os seus sonhos. O meu problema é atomizarmo-nos nos nossos sonhos individuais, na impossibilidade de os atingir e no culto de uma imortalidade breve e ilusória, sem História nem sentido social. Por outras palavras, é urgente temperar o nosso enorme YOLO contemporâneo com um bocadinho de Memento Mori medieval.

Numa sociedade obcecada com o sentido da vida, com a procura da felicidade e que põe os olhos e a fé em cada movimento do Cristiano Ronaldo, da tabacaria, sem metafísica, é no mínimo estranho que a ideia da morte não seja convite bastante para nos fazer reflectir sobre o sentido histórico e social da nossa própria existência.

Longe do mundo e à deriva da História, presos num Truman Show de pobreza e injustiça, qualquer sonho é vão se não se apoiar na razão. Até mesmo os sonhos de Cristiano Ronaldo. Não se trata de renunciar à individualidade, mas sim de galgar socialmente, historicamente, os nosso limites biológicos, integrando-os numa história que dê razão ao que, em última análise, só para os religiosos pode ter sentido.

Que sonho devemos, então, colectivamente procurar? O sonho de sermos seres humanos cultos. Culto não no sentido pretensioso, mas na acepção do cultivo da humanidade, como plasmado na definição de Bento de Jesus Caraça:

«O que é o homem culto? É aquele que:
1.º Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;
2.º Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;
3.º Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.
Ser-se culto não implica ser-se sábio; há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios; mas o que o ser culto implica, é um certo grau de saber, aquele que precisamente que fornece uma base mínima para a satisfação das três condições enunciadas.»*

Não poderemos sonhar livremente enquanto não compreendermos a posição que ocupamos no mundo em que vivemos. Como Cristiano Ronaldo, podemos saltar, dançar, gritar e correr à vontade dentro do barco, que ele continuará a navegar inexoravelmente ao mesmo azimute. É preciso aprender a enfiar a mão na água, para lhe alterar um pouco o rumo e para que, um dia, os nossos netos deitem mão ao leme.

É que por mais que estejamos convencidos de que vivemos no éter, acima dos assuntos do mundo, independentes dos sonhos alheios, é neste mundo que vivemos. Por estarmos vivos estamos desafiados a transformá-lo. E mesmo que sejamos o Cristiano Ronaldo, um dia, quando menos se espera, morre-se uma morte estúpida, como são estúpidas todas as mortes, e alguém há-de dizer que (como Baltasar) não pôde subir às estrelas, se à terra pertencia.

*Bento de Jesus Caraça, no seu texto «A cultura integral do indivíduo» (conferência proferida na União Cultural « Mocidade Livre», em 25 de Maio de 1933)