Contra o sectarismo

Teoria

Ao longo do fio ideológico do movimento comunista internacional (MCI), os desvios de esquerda e de direita contra a ciência do marxismo-leninismo correspondem invariavelmente a passos atrás na batalha das ideias que acompanham as convulsões naturais da luta de classes, varando contudo o movimento operário de crespos espinhos, por vezes com a profundidade de vários séculos.

Muito antes de Lénine cunhar o termo «esquerdismos» já se verificava, mais propriamente desde o embate entre Marx, Lassalle, Bakunine e quejandos, que os desvios reformistas, esquerdistas ou sectários eram indestrinçáveis da influência da burguesia. O impacte dessa influência, ora agindo ingenuamente ora sob os desígnios calculados do capital, varia em função da robustez e flexibilidade ideológica do movimento comunista perante os avanços e recuos da guerra de classes. Quer isto dizer que nem todos os desvios revolucionários nascem das maquinações dos capitalistas, muito embora a sua capacidade de afectar o rumo da História dependa sempre da força e preparação política do partido de vanguarda da classe operária.

Com efeito, é notório que todos os desvios (retrocessos) historicamente relevantes ao marxismo executaram um movimento descendente, do topo para a base. Este singular fenómeno, de corte reformista na maioria dos casos recentes, explica-se com o desfasamento entre a consciência em si dos interesses do proletariado e os seus interesses de classe para si. Mesmo quando aparentemente espontâneos e genuínos, os desvios ao marxismo não podem nunca ser separados da luta de classes em curso, ou tal concepção negaria o próprio fundamento materialista do marxismo. É portanto claro que todos os desvios do marxismo estão imbuídos da influência de outras classes sociais.

Ao longo do século XX, os desvios de esquerda e direita foram acompanhando de oportunismo os momentos das grandes decisões no movimento comunista. Do reformismo de Bernstein, à social-democracia de Kautsky passando pelo esquerdismo dos movimentos ditos “trotskistas”, a saúde ideológica do MCI entrou numa espiral decadente após a morte de Estaline e atingiu o apogeu moribundo após a queda do campo socialista no princípio da década de noventa, queda essa em que o próprio esquerdismo exerceu influência indelével.

O desbarato de princípios, a desistência de fazer a revolução e o abandono dos fundamentos filosóficos, económicos e políticos do marxismo atingiu cúmulos abjectos entre alguns partidos de longa tradição no MCI. Enquanto o capitalismo assistia ufano à auto-dissolução das antigas vanguardas da classe operária, que agora se rendiam ao cretinismo-parlamentar e às promessas dos Olimpos nórdicos da social-democracia, a exploração e a miséria avançavam.

Volvidos trinta anos, os resultados dos desvios reformistas estão à vista de todos: uma classe trabalhadora indefesa, à beira da senilidade, à mercê dos piores insultos e de constantes ultrajes e condenada a regressar às condições de vida do século XIX, sem advogado de defesa nem compreensão quem é a acusação. À escala global, sobrou a esta tragédia não mais que uma mão cheia de partidos, dos quais o PCP é politicamente o mais relevante. Findada a tempestade histérica do esquerdismo, derrubado o muro e reintroduzido o capitalismo selvagem no mundo, a classe operária mundial recomeçou um longo caminho de volta ao marxismo e à via revolucionária, como auspiciam os exemplos progressistas na América Latina e o modesto mas sustentado crescimento dos partidos comunistas um pouco por todo o mundo.

Porém, reagindo ao desvio social-democrata do século passado de que ainda hoje padecem a maioria dos partidos comunistas do MCI, tem nascido um novo desvio como resposta ao anterior mas nem por isso menos perigoso: o sectarismo. Pela sua lógica autista, o PCP vendeu-se porque tem reuniões com o BE, a Venezuela só serve para enganar a classe trabalhadora, quem não exige a saída “imediata e incondicional” da UE é reformista e quem votou na Dilma no 2º turno é social-democrata.

Sem uma aliança com não comunistas nas mais diversas esferas de actividade, é impossível construir o comunismo – Lénine

Onde podem, afinal, ser encontrados os sectários que acuso? Na internet. São portugueses sem militância partidária que não participam em qualquer tipo de luta embora se dediquem exaustivamente a acusar os que lutam de reformismo.

Mas não satisfeitos com o isolamento já conquistado, os sectários agridem pública e constantemente os revolucionários de outros países, ao mesmo tempo que peroram prescrições para todas as maleitas de todo o mundo. Os sectários são a antítese idealista do marxismo-leninismo: A Lénine devemos o engenho de construir uma organização de vanguarda flexível, disciplinada e eficiente, capaz de se adaptar a todas as condições bem como de aproveitar todos os meios, cedências e alianças que contribuam para fazer avançar a luta do proletariado numa direcção revolucionária e de conquista do poder. Ignorar a política de alianças de Lénine incluindo o governo de coligação que liderou, escamotear a sua participação em eleições burguesas e fingir que o NEP nunca existiu são sintomas comuns da deficiente bagagem histórica dos sectários.

Os sectários dedicam-se publicamente então à caça de pulgas, achando uma palavra errada aqui ou uma perigosa cedência ideológica ali, enquanto cultivam, para consumo interno, a fruição de léxicos e imagéticas. No entanto, os sectários não compreendem que nem é pela repetição da expressão “ditadura do proletariado” que ela se constrói nem pelo culto frenético da imagem de Estaline que a revolução armada se acelera. Pelo contrário, o cultivo para consumo interno da perfeição fraseológica ossifica os hábitos e os vícios das organizações que são o objectivo de si mesmas. Essa é a lógica dos museus e das igrejas, mas não dos partidos políticos.

A verdade é que os mais sectários dos sectários vêm-se aproximando progressivamente dos esquerdistas que supostamente detestam: como os esquerdistas, querem chegar imediatamente aos fins ao mesmo tempo que trabalham para que o movimento seja tudo; como os esquerdistas, cultivam frases e símbolos de uma forma oca e quase religiosa; como os esquerdistas estão dispostos a fracturar o MCI e queimar as energias populares nas birras e caprichos que constituem a doença infantil do comunismo. Pode-se afirmar que na história das ideias, os sectários estão mais perto do anarquismo do primeiro quartel do século XX que do leninismo da mesma época.

Então, o que separa os sectários do marxismo-leninismo? Não é nenhuma posição política sobre a UE, nem nenhuma avaliação sobre as características de outra organização, mas a recusa em aceitar a natureza dialéctica da política e se adaptar às exigências da acção.

Tal como todos os outros desvios ideológicos, o sectarismo está associado aos solavancos da luta de classes e não é independente das influências da burguesia. E tal como todos os outros desvios, acabará por ser rejeitado pela experiência e vontade dos trabalhadores, cujo interesse de classe não é construir igrejas, mas revoluções.

*Corrigido a 4 de Novembro de 2014