Crónica de uma morte anunciada

Nacional

A primeira frase do livro do maior escritor que a Humanidade nos deu, e que pedi emprestada para o título deste texto, reza assim: “No dia em que iam matá-lo, Santiago Nassar acordou às 5.30 para esperar o barco em que chegava o bispo”. Gabriel García Márquez desenhou uma trama que nos relata como toda uma aldeia sabia que dois irmãos gémeos, Pedro e Pablo Vicário, matariam aquele jovem de 21 anos, mas ninguém avisou o pobre Santiago.

Por cá, desde que este governo tomou posse, há cerca de um ano, não creio que tenha havido quem, com honestidade, pensasse que governo chegaria ao fim legislatura. Tal como sucedeu com Santiago Nassar, todos sabíamos que este era um governo condenado politicamente. A par disso, surgiram uma série de casos envolvendo ministros e secretários de Estado. Miguel Pinto Luz e a TAP, a tendência imobiliária de membros do governo, que levou à demissão de Hernâni Dias e, depois, as avenças de Montenegro, mais a forma como pagou a pronto uma casa e as contas utilizadas.

Um país que floresce

“As pessoas não estão melhor, mas o país está melhor”, dizia Montenegro há uns anos, quando Passos Coelho arrasava a vida de milhões de trabalhadores, reformados e jovens. Com o ataque descarado ao SNS por parte de uma ministra incapaz, uma ministra da Administração Interna que é tão frágil que foi proibida de falar, um ministro da Educação que usa o Expresso para fazer propaganda e planta um a notícia falsa sobre os alunos sem professores, quando, hoje mesmo, são anunciados os lucros de quase 5 mil milhões de euros – 5.000.000.000 – dos cinco maiores bancos durante o ano de 2024. Estamos a falar de 13,6 milhões de euros de lucro por dia, enquanto a resposta do governo – e do PS -, para o drama da habitação é uma lei que vai facilitar a especulação.

A crise

Perante a crise social e com o Presidente da República desaparecido, o governo enredou-se nos casos já referidos e morreu, mas, como Santiago Nassar, continuou a fazer a sua vida normal, porque ninguém lhe disse que estava morto, durante demasiado tempo. O PS, com um líder que surgiu como messias de um PS de esquerda que ninguém vê e continua em ponto morto, permitiu a aprovação do Programa de Governo e o Orçamento do Estado. Berrava pelas ruas da aldeia que a situação do governo é insustentável, mas não percebeu que o governo estava a caminho da morte. Fez, aliás, os possíveis para que se mantivesse vivo, a bem da estabilidade, sendo que a única estabilidade que existe é aquela de que benificia os que mais têm e mais ganham.

Censura vs CPI

No meio daquela apatia generalizada, com Santiago Nassar e os seus vizinhos a fazerem a sua vida normal apesar da tragédia que se avizinhava, só o PCP teve coragem de pôr um ponto final na agonia do país e do povo, ao apresentar uma moção de censura para derrubar o governo. O PS preferiu manter a passividade e deixar na mão do governo quando, eventualmente, um dia, quem sabe, decidiria que já chegava de escândalos e era preciso responder aos problemas do país. Mais, ao anunciar uma Comissão Parlamentar de Inquérito e votando contra a moção de censura apresentada pelo PCP, garantiria, pelo menos, mais um ano do atual governo, porque o Presidente da República não pode convocar eleições nos últimos seis meses do seu mandato, da mesma forma que o próximo não poderá fazê-lo nos primeiros seis meses.

Os vizinhos

No comentariado nacional, foi adotado o discurso oficial da metáfora piscatória de que o PCP mordeu o isco, que era um favor ao PSD, que o PCP não queria eleições, enfim, todos os argumentos a juntar à Coreia do Norte, Venezuela, iphone, China, Putin e por aí fora. Portanto, o partido que apresentou uma moção de rejeição do Programa de Governo e que votou contra o OE, estaria agora interessado na continuidade do governo. Já o PS, indignadíssimo com este governo e com a situação do país, teve a jogada de mestre de anunciar o voto contra. Montenegro manter-se-ia a queimar em lume brando, até que o PS conseguisse afirmar o seu líder e esperar por dias melhores nas sondagens. A IL, deliciada com a aprovação das PPP para hospitais públicos, já veio anunciar que se coloca ao lado do morto, no papel de carpideira do morto anunciado.

A confiança

A moção de censura do PCP, que daria imenso jeito ao governo, de acordo com sentido aguçado de muitos comentadores, acabou por levar o governo a apresentar uma moção de confiança. A Comissão Parlamentar de Inquérito, anunciada pelo PS como causa da moção de confiança, é uma desculpa que só cola em quem se recusa a reconhecer que não fez a análise correta, porque a CPI pode e vai acontecer, assim o PS queira, mesmo depois da queda do governo. Partindo do princípio que o PS não volta atrás e votará contra a moção de confiança – o que é sempre um risco, como é um risco aguardar pela votação da extrema-direita – o governo caiu. E, se não cair, não será por isso que continuará menos morto.

A tragédia das eleições,
a extrema-direita e o voto útil

Começam a vir a público membros de vários partidos muito preocupados com eleições. Como escreve Margarida Davim na Visão, temos bom remédio para resolver isso; voltamos a uma ditadura, não há risco de crises políticas nem escândalos, nem corrupção, nem avenças, porque são escondidas. Não se gastam os 25 milhões de euros em eleições, que o JN puxou para manchete. Viveremos alegremente, sem esta coisa de o povo ser chamado a decidir sobre o seu futuro sempre que tal se justifique, fora do calendário oficial. Há mesmo quem defenda que este governo continue em funções por causa do perigo da extrema-direita que rouba malas no aeroporto e mantém relações sexuais com menores . No limite, deixemos de ter eleições por causa da extrema-direita. Não passa pela cabeça destas almas que a extrema-direita se combate com o contrário do que este governo tem feito, respondendo aos problemas e anseios do povo. Já se começam, também, a fazer leituras sobre o voto útil, o que é absurdo. Nestas eleições não haverá maioria absoluta de qualquer partido, pelo que o que contará é a relação de forças dentro do Parlamento. Logo, mais votos e mais deputados na CDU, em quem defende os interesses do povo e do país, farão a diferença.

O governo morreu e ninguém lhe disse. E tenho sérias dúvidas que nós, os comuns mortais fora do panorama do comentariado, compreendessemos que não houvesse eleições perante todo o panorama instalado. Vamos a elas, sem medo.

1 Comment

  • Manuela Galhofo

    9 Março, 2025 às

    Está aqui tudo. O meu comentário é apenas: “vamos a elas”, com toda a confiança.

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