Da destruição de símbolos

Nacional

Que diriam os antigos romanos sobre este intenso debate que agora se despertou em torno das estátuas? Eles criavam figuras de vulto de imperadores, senadores e outras figuras políticas com cabeças amovíveis. Deste modo, quando alguém caia em desgraça, morria por morte matada ou morte morrida ou era destituído, eram também descartadas as suas imagens e, admitamos, era mais fácil trocar a cabeça do que o corpo inteiro. Nada de memórias escrupulosas.

Serviu esta introdução para dizer que estátuas, antes de obras de arte, são símbolos. E que, embora o património cultural seja decretado, na realidade, ele só o é de facto quando tem relevância para a identidade colectiva de um povo. Não coincidindo muitas vezes, por excesso ou omissão o decretado com o efectivo.

No entanto, a construção da identidade colectiva, tal como qualquer outra coisa, faz parte da luta ideológica e o espaço público e os seus símbolos são campo de batalha. Essa identidade constrói-se todos os dias em plena luta de classes. Desiluda-se, portanto, quem pense que aquilo que se entende por memória histórica é algo de inócuo e transversal e que o que, de entre os testemunhos materiais, se escolhe conservar, destruir, enaltecer ou arquivar é feito segundo critérios de aceitação universal. Não o é. Já muitos o disseram: a História é contada pelo vencedor. Quando o dizem não se referem a toda a história mas à história oficial, à história do poder, à versão da história que beneficiará de recursos para ser aprofundada e difundida. Uma história que pode bem ser distorcida, manipulada, mascarada, branqueada contra esforços de rigor e honestidade intelectual de muitos historiadores.

Estátuas e monumentos fazem-se e erguem-se como homenagens. E homenagens são promessas de fidelidade, etimologicamente, compromissos de vassalagem e, numa interpretação de significado actual, reconhecimento sobre ascendência de valores e qualidades. E é por isso que a escolha das figuras ou dos acontecimentos a que colectivamente prestamos homenagem se inscreve na batalha das ideias.

O tempo, naturalmente, dilui e altera o significado dos símbolos. Outros significados, determinados por acontecimentos históricos, são somados. O templo de Diana em Évora (que, afinal nem era um templo dedicado à deusa Diana mas sim ao culto imperial) já não representa um tributo a um aspecto concreto da cultura romana mas sim o reconhecimento de toda a cultura romana que herdámos. Os conflitos que terão existido relacionados com a pax romana já não têm a relevância suficiente para que vejamos naquele templo um símbolo de dominação de uma cultura sobre outra. O império romano deixou de existir e por isso as suas marcas originais carecem de significação política actual. Isto não quer dizer que alguns símbolos possam perpetuar-se e também em tributo ser retomados. O fascismo foi buscar o simbolismo (e denominação) ao feixe de lictores que representava o poder imperial romano ao mesmo tempo que o movimento espartaquista (alemão) adoptava o nome daquele que conduziu a mais célebre revolta de escravos contra o poder de Roma, Espártaco.

Em tempos de convulsões políticas os símbolos do status quo são sempre objecto de atenção. Da luta pela mudança política faz parte a luta pela mudança do paradigma ideológico e desta a luta pela mudança imagética (entendendo-se por imagética a manifestação visual da ideologia, tal como definiu o Nicos Hadjinicolaou na sua História da arte e movimentos sociais) e, naturalmente, pela simbologia associada. Aquilo que vemos a acontecer nos Estados Unidos com estátuas de esclavagistas e figuras associadas à opressão de negros e ao racismo é disto exemplo. O que vemos a acontecer na Europa é apenas a mimetização pela “onda de choque” produzida. Querer associar a este fenómeno o rótulo de vandalização gratuita do património ou afirmar que ao destruir os símbolos destrói-se a história é como dizer que a destruição, no pós-guerra, dos milhões de suásticas que invadiam o espaço público de toda a Alemanha representou uma destruição da história. Só os saudosistas do nazi-fascismo defendem que estes símbolos deviam continuar a ornamentar todas as esquinas das cidades alemãs. E ninguém julga que o branqueamento da monstruosidade nazi advém do desaparecimento das suásticas.

Quando em Fevereiro de 2003 Colin Powell anunciou, na sede da ONU, o bombardeamento do Iraque, fê-lo em frente a uma reprodução de Guernica que foi tapada para o efeito. Nem a história da atrocidade cometida contra a cidade basca desapareceu nesse acto nem a barbaridade perpetrada contra o povo iraquiano deixou de se escrever por isso. O quadro Guernica passou para o imaginário colectivo como um símbolo do que é a guerra, do que são ataques aéreos sobre populações indefesas. Há hoje milhares de reinterpretações da pintura de Picasso. O Guernica integra assim a identidade colectiva de todo o mundo. Ao esconder o Guernica naquele célebre anúncio ao mundo quiseram esconder a contradição entre o que era anunciado e os valores defendidos pela humanidade. Quiseram esconder que iam contra a vontade dos povos. Felizmente isso não lhes bastou: o ataque ao Iraque foi condenado em manifestações multitudinárias em todo o mundo. Infelizmente os bombardeamentos fizeram-se de igual modo e muitos outros se seguiram. Bombardeamentos que, de resto, para além das mortes e da destruição de cidades ideiras, levaram à destruição de importantes núcleos arqueológicos onde, aí sim, se encontravam vestígios importantes para a compreensão da história. A guerra contra o Iraque resultou ainda no saque pelos norte-americanos de importantíssimas obras que se encontravam em museus nacionais e que reportavam à origem das civilizações humanas. Um roubo de símbolos de identidade colectiva feito enquanto se encenava o carácter espontâneo da destruição da estátua de Saddam Hussein.

Depois, obviamente, conta o valor artístico e a assimilação puramente formal, telúrica, destes monumentos e estátuas que convertem-se por isso em elementos identitários. Se me fosse dado a escolher entre preservar o Padrão dos descobrimentos ou monumento ao 25 de Abril do Cutileiro escolheria o primeiro, sem pestanejar. Não tenho dúvidas sobre o que um e outro representam mas enquanto que o padrão é uma obra escultórica excepcional o monumento ao 25 de Abril é uma aberração.

Mas confesso que sempre que passo frente ao gigantesco busto de Sá Carneiro no Areeiro, apetece-me atirar um balde de tinta vermelha à base da cabeça para simular uma decapitação. Imagino muitas vezes um mergulho de cabeça do Cristo Rei. Faria, no mínimo, uma inscrição nas largas costas do D. Carlos em Cascais, a dizer: vítima da doença profissional dos monarcas.

Por outro lado, julgo que toda a gente, pelo menos uma vez na vida, deveria visitar o monumento de homenagem ao povo do Couço e emocionar-se com as inscrições que se encontram no seu interior.

O Padre António Viera não terá sido um Bartolomeu de las Casas mas também não foi nenhum Torquemada. A vandalização da sua estátua foi uma provocação, provavelmente da extrema direita. Percebe-se a intenção: fomentar um discurso de criminalização e ódio ao anti-racismo. Não deixa de ser curioso observar que, à semelhança de muitos outros debates em que a dissonância do poder é vista como violência e a imposição como normalidade,  também neste debate se verifica a hipocrisia da ideologia dominante. O absurdo da situação chega a este ponto em que quem combate o sistema e o seu discurso se vê pressionado a abdicar de frentes de batalha e ferramentas de luta pelo simples facto de, nas suas mãos, elas passam a ter uma conotação do mal que no poder não têm.

Em Belém, na Palestina, encontra-se, uma das mais antigas, senão a mais antiga oliveira do mundo. Aponta-se que terá cerca de 5.000 anos. Os palestinos veneram as oliveiras, cultivam-nas como meio de subsistência mas também para preservar o símbolo maior da sua cultura. As oliveiras fazem parte da sua terra e da sua vida desde sempre. Todos os anos Israel destrói centenas de oliveiras. Esta oliveira, em particular, prova que os árabes cananeus já se encontravam no território antes que qualquer judeu. É uma árvore anterior aos “factos” descritos no Antigo Testamento onde os sionistas sustentam a razão de ocuparem aquele território. O governo palestino paga a Salah Abu-Ali para que seja guardião e não saia do pé da árvore, ainda assim a oliveira, chamada Al-Badawi (a grande), corre risco de destruição. Quando, em 2007, foi construído o muro que aprisiona a Cisjordânia a Al-Badawi ficou a menos de 20 metros e parte das suas raízes foram cortadas. Se querem chocar-se com a destruição de símbolos e monumentos, choquem-se antes com isto.

3 Comments

  • José Corvo

    23 Junho, 2020 às

    Ainda era eu filho único e nas tardes de muito calor, alentejano, lembro-me de tudo, íamos com uma enxerga apanhar o fresco para debaixo de uma oliveira toda ocada e numa pernada havia um ninho de lepra, dizia o meu pai, que esqueci-me e nunca mais vi uma lepra e hoje até ponho em causa a sua existência. Lepra? Acho que era amarelada.
    Tudo chega ao fim e não me admira que novas oliveiras venham dar lugar às velhas sempre assim foi, então eu que ficava com as mãos engadanhadas de andar a apanhar as azeitonas, não tenho saudades nenhumas.

  • José Corvo

    23 Junho, 2020 às

    Ainda era eu filho único e nas tardes de muito calor, alentejano, lembro-me de tudo, íamos com uma enxerga apanhar o fresco para debaixo de uma oliveira toda ocada e numa pernada havia um ninho de lepra, dizia o meu pai, que esqueci-me e nunca mais vi uma lepra e hoje até ponho em causa a sua existência. Lepra? Acho que era amarelada.
    Tudo chega ao fim e não me admira que novas oliveiras venham dar lugar às velhas sempre assim foi, então eu que ficava com as mãos engadanhadas de andar a apanhar as azeitonas, não tenho saudades nenhumas.

  • Inês B.

    15 Junho, 2020 às

    Percebo o que diz, e é um belo contributo à discussão por introduzir mais uma camada se significados. Porém, não é preciso ir à Palestina para encontrar árvores-monumento. Atravesse-se o Alentejo e veja-se como oliveiras antiquíssimas, que davam o mais fino dos azeites, estão a ser arrancadas e substituídas pelo olival superintensivo…e a desertificação avança.

Comments are closed.