Das desigualdades da morte #revisitado.

Nacional

Em Agosto de 2013 escrevi este texto sobre a morte do meu Pai.

Hoje li que «A padecer de uma leucemia aguda, Manuela Estanqueiro, uma professora de 63 anos, viu a Caixa Geral de Aposentações negar-lhe a reforma duas vezes. A instituição só emendou a mão escassos dias antes de a docente morrer, em 2007, depois de a ter forçado a dar aulas em grande sofrimento.».

Deixo-o novamente, para que ninguém se esqueça que nem na morte somos iguais.

E o que mais me impressionou foram os comentários.

Esta história não é minha. Esta história é de todos nós. Mais de uns do que de outros, mas é nossa.

«Como um rico, com cancro, morre melhor do que um pobre. Aparentemente isto é raiva, ódio aos ricos. É falar sem racionalidade. Pois racionalidade é algo que nunca vi no tratamento de doentes crónicos, nomeadamente oncológicos, no nosso país.

E descrevo uma história que não é a minha. Tem todos os nomes, ou quase todos.

Em 22 de Março foi diagnosticado um cancro de pulmão, carcinoma de pequenas células, estágio IV ao meu pai. Era dia de greve geral. Terceiro aniversário da minha irmã. Abandonei os piquetes às cinco da manhã e parti para cima. O diagnóstico demorou meses. Desde infecções respiratórias, ataques de ansiedade (?), gripes. Meses até dizerem: cancro. O meu pai era já um doente de risco, sempre seguido no hospital dados os problemas cardíacos que tinha. Nunca ninguém detectou o cancro que lhe corroía as entranhas.

Nesse momento soube que o meu pai ia morrer em breve, embora nunca o tivesse verbalizado. Começou, pois, a saga dos tratamentos. Protocolos com quimioterapia e radioterapia. Medicamentos, atrás de medicamentos.

O meu pai acabava de concretizar o sonho de uma vida, licenciou-se em Direito. Velho demais para trabalhar, novo demais para a reforma, dizia-me, com os olhos pregados no chão «quem quer alguém com cancro?». Nunca lhe tinha ouvido nada derrotista. Desde o primeiro minuto, desde sempre, nunca desistia ou se sentia derrotado. Desta vez era diferente. Pronto para enfrentar o mundo e a doença, sabia bem das limitações.

Fomos então pedir a invalidez. A Segurança Social recusou. Sem subsídio de desemprego, sem pensão, a companheira desempregada de longa duração. Uma filha de três anos.

Os medicamentos eram pagos entre mim e a minha irmã. A família ajudava no que podia. O meu pai não tinha carro. A minha lata velha servia-lhe, enquanto pôde conduzir, para ir aos tratamentos (não há transportes públicos nem hospitalares). Acabada a quimioterapia, seguia-se a radioterapia paliativa. O hospital recusou. Era paliativa.

Levantámos uma tempestade, todos os órgãos de comunicação social se interessaram. O hospital voltou atrás. Foi ao IPO – Porto onde tinha que ficar todo o dia porque só havia um transporte para os doentes. Caso quisesse vir mais cedo, porque não aguentava estar lá, teria que pagar. Ficava lá.

Houve meses em que não tomou toda a medicação. Não tinha dinheiro e era demasiado orgulhoso. Não pedia. Era preciso descobrir e estar atento ao que faltava.

Liguei para a Fundação Champalimaud mal soube da máquina que apenas com uma sessão de radioterapia diminuía o tumor de forma significativa. Responderam-me que precisava de uma consulta de avaliação e a sessão de radio seria 5 000 euros. Perguntei se no público haveria máquina idêntica. Disseram-me que não. Agradeci e desliguei. Descobri que havia uma máquina parecida no Hospital do Barreiro. E que o médico, por querer que todos pudessem aceder aos tratamentos teria sido afastado.

Ouvi o meu pai uma vez «para sofrer tanto para poder ter tratamentos mais vale morrer de uma vez. Isto não é vida». Lentamente ia perdendo o seu corpo, a sua mente.

Acompanhava-o nos longos dias de exames, feitos no hospital privado da Boavista porque nenhum hospital público dispunha das máquinas necessárias. Almoçávamos uma francesinha a meio dos tratamentos e víamos coisas para o único neto do meu pai. E voltávamos ao hospital.

Nunca lhe propuseram estar internado. Não lhe deram soro nem morfina, fomos nós que exigimos. Já não aguentava mais ver o sofrimento contínuo do meu pai. A cadeira articulada, foi emprestada, arranjou-a a minha tia, e uma grade para a cama. O meu cunhado passou a levar e a trazer o meu pai, ele já não conseguia conduzir. A companheira dividia a medicação e aplicava. Aprendi a dar injecções porque a Joana, que é minha amiga e é enfermeira me ensinou, ensinou-me a dar-lhe banho, a virá-lo na cama para que não ganhasse feridas, a limpar-lhe a boca e a alimentá-lo. Tirei licença para estar com o meu pai. A minha irmã não pôde, era um falso recibo verde.

Pedi um empréstimo para poder pagar tudo isto. Tive que mudar de banco e vou pagar o empréstimo nos próximos dez anos. Estive sempre ao lado do meu pai. Colocámos o soro, dei-lhe de comer. Começou a tossir, sem parar. A família reuniu-se em volta dele. O gato, saiu dos pés do meu pai e começou a aproximar-se lentamente do seu peito. E eu pensei, é agora.

Corri para o lado dele, dei-lhe a mão e vi uma lágrima a correr-lhe na face esquerda.

O meu pai morreu.

Não houve jornais, não houve televisão. De vez em quando há uma notícia que diz que os tratamentos estão a ser negados aos doentes oncológicos, que o IPO não tem dinheiro.

O meu pai tinha 54 anos. A vida inteira pela frente. Nunca defendeu salários baixos nem privatizações. Trabalhou desde os 14. Tirou um curso aos 53 porque era o seu sonho. A estes não há homenagens. Aos que lutam pela sobrevivência durante todos os dias com dores excruciantes e a violência do Estado. Não, para estes não há memória, não há camas de hospital, medicamentos.»

Uma história demasiado comum:

susana martins diz:
Agosto 26, 2013 às 6:38 pm
Desde o dia 8 de Dezembro que não chorava como chorei ao ler o relato do que passou com a doença do seu pai. O meu pai morreu de cancro do pâncreas, lutou bravamente durante 15 penosos meses, e tal como com o seu pai, também ninguém, tirando família e amigos, lhe prestou homenagem…

alexandra diz:
Agosto 26, 2013 às 9:45 pm
Os meus sentidos pesâmes. Perdi também em menos de dois meses, o meu pai com um cancro no fígado, no dia 11 de julho, A minha revolta não tem limites. o meu pai já contava com 83 anos e sinto que como já tinha esta idade, foi considerado ” um trapo velho”, no qual não vale a pena investir muito. O meu pai foi um dos Militares de Abril e apenas a família e os amigos mais chegados lhe prestaram a sua verdadeira homenagem. Soube que uma estação televisiva noticiou a sua morte. Mas se hoje há a l”dita” liberdade de imprensa, a ele também o devem. Várias pessoas ( nomeadamente políticos) souberam da sua morte e nem uma palavra, nem um telefonema, nada. É revoltante!

Vera diz:
Agosto 26, 2013 às 10:52 pm
Muita Força, Lúcia! Perdi o meu avó recentemente com um problema similar! A minha mãe viveu durante meses o seu drama porque o acompanhou em todas as consultas e sessões. Correm-me as lágrimas pelo rosto e imagino o seu sofrimento. O meu avó Eugénio era uma pessoa simples para o qual bastava apenas um sorriso e dois dedos de conversa. Quem me dera ainda lhos poder dar! Coragem, minha querida!

Laura Silva diz:
Agosto 27, 2013 às 12:41 am
A minha mãe faz 3 anos que faleceu…não tivemos direito a ajudas, da segurança social, nada…com 45 anos. Carcinoma de pulmão de não pequenas células. Vamos ver até onde chega esta brincadeira…bate à porta de todos, é degradante…é triste.

Clara Cardoso Pereira diz:
Agosto 27, 2013 às 11:13 am
Ler o seu post lembra-me a morte do meu pai. Lembra-me também a impotência do SNS, a indiferença dos médicos, o anonimato da dor da perda. É gritante a diferença na doença e na morte quando o dinheiro é a palavra-passe para tudo. Lamento a sua perda e a sua dor. Desejo-lhe muita força e coragem.

maria teresagonçalves diz:
Agosto 27, 2013 às 11:29 am
Cara Lúcia Gomes, lamento profundamente o sofrimento e a perda do seu pai.infelizmente passo por algo semelhante,a morte da minha mae com cancro nos rins ,fulminante dizem os medicos, talvez para esconderem a sua ignorancia.Durante meses a minha mae teve de tudo desde alergias ,a bronquites ,e pleumonias,e nenhum medico viu que o mal dela era um cancro espalhado por todo o seu organismo.Morreu no dia em que fez o ultimo tac.Entrou nas urgencias as 16 h e as 21 mais ou menos a medica disse-me a sua mae vai ficar ca para se avaliar ate aonde esta espalhado o cancro (.tudo caiu o choque da noticia ,as perguntas sem respostas,como é que durante dois meses todos os dias levava a minha mae para as urgencias ia a medicos ,fazia exames e tornava a fazer,e ninguem viu.cancro mas como?)de manha a noticia chegou a sua mae acabou de falecer.cancro nos rins espalhado por todos os seus orgaos,nao podemos fazer nada era muito tarde . E o tempo antes dois anos em que andei com ela em consultas e exames. esta tudo bem diziam é a idade ,são as mazelas da idade.A minha mãe tinha 78 anos.novos ou velhos nada valemos para este país .a revolta,a indignação a dor aperta e o saber que nos espera desta gente desumana que nos governa e que nos vai levando tudo aos poucos.

M Almeida diz:
Agosto 27, 2013 às 12:32 pm
Cara Lúcia Gomes
Os meus sentimentos pela morte do seu pai.
Infelizmente, neste país que parece não nos pertencer, todos temos uma história para contar. Assisti à luta da minha mãe e da irmã, auxiliadas pelos maridos, pelos meus avós – que tiveram seis filhos, excepto nas horas de necessidade -, e reconheço em si a força delas. Também a minha mãe, que sofre de artrite reumatóide desde os 24 anos, sofre com a falta de apoios de que padecem aqueles que mais necessitam.
Muita força!

Filomena Vicente diz:
Setembro 20, 2013 às 12:40 am
é triste ter de se morrer de doença tão grave e tão dolorosa quer para o doente quer para a familia. Embora compreenda as razões da sua revolta, não concordo quando diz que o SNS não trata bem os doentes. Poderá dizer que existem pessoas maltradas nos hospitais concordo consigo, embora com esta politica destes governos o nivel do SNS tenha baixado, devemos pôr os olhos em milhares de doentes oncologicos que estão a ser tratados neste serviço e muito bem tratados. falo com conhecimentos de causa tanto do meu afilhado de 12 anos que morreu de leucemia no IPO e que de tudo fizeram para aliviar seu sofrimento, falo de uma idosa de 87 anos de quem tomo conta que foi operada cancro intestinhos que foi seguida no Hospital Lusiada atraves da ADSE e que esta curada e os medicos tudo fizeram para que ela não sofresse tanto com muito carinho e cuidados, tenho uma amiga com cancro no pancreas tem 57 anos esta a ser tratada no Hospital Santa Maria pela SNS e esta esperançosa pois a forma como tem sido tratada lhe dá essa esperança,,. penso que não poderemos tranferir o odio para pessoas que por serem ricas achemos que não sofrem, sofrem sim e suas familias ficam igualmente desestruturadas. Portanto sejamos realistas lutemos por um SNS digno para todos, refilemos com quem de direito, batamos á porta dos que nos tratam mal, saiamos à rua para nos fazermos ouvir…isso sim ajudaria aqueles que como o seu pai não tiveram a mesma sorte nos tratamentos. As mortes são sempre de lamentar sejam elas de pobres ou de ricos. é triste ver pessoas inteligentes penso eu baterem da mesma tecla ” a culpa é dele porque é rico”, não a culpa é nossa por não exigirmos ser tratados como eles. de uma coisa temos a certeza eles morreram e isso é triste.
respeitosamente,
Filomena