“No 3.º trimestre de 2024 (dados provisórios) a renda mediana dos 23 684 novos contratos de arrendamento em Portugal atingiu 8,00 €/m2 . Este valor representa um crescimento homólogo de 10,7%, inferior ao observado no trimestre anterior (11,1%). Quando comparado com o 3.º trimestre de 2023, o número de novos contratos de arrendamento diminuiu 5,0%. (…) As rendas mais elevadas registaram-se na Grande Lisboa (13,53 €/m2 ), Região Autónoma da Madeira (10,66 €/m2 ), Península de Setúbal (10,18 €/m2 ), Área Metropolitana do Porto (9,09 €/m2 ), Alentejo Litoral (8,82 €/m2 ) e Algarve (8,81 €/m2 ). No 3.º trimestre de 2024, verificou-se um aumento homólogo da renda mediana nos 24 municípios com mais de 100 mil habitantes, destacando-se o Funchal (25,9%) com a maior variação homóloga e Lisboa com a maior renda mediana (16,18 €/m2 ), embora com uma taxa de variação homóloga (3,0%) inferior à nacional (10,7%).” – www.ine.pt
Lucros da banca após dedução de impostos em 2023: 5 281 718 milhares de euros. – www.apb.pt
“Com o apoio da IL e Chega, PSD, CDS e PS dão 365 milhões aos grupos económicos em IRC.” – www.pcp.pt
“A lei dos solos é um aproveitamento para alimentar a especulação.”
– Intervenção de Alfredo Maia na Assembleia da República, 24 de janeiro de 2025
Quem olhasse para a comunicação social dominante em Portugal poderia pensar que o grande problema do país e dos trabalhadores fosse o pânico coletivo pelo iminente assalto russo à costa portuguesa e a necessidade imperiosa de afectação de mais e mais recursos públicos à compra de armas aos americanos, em sacrifício dos nossos salários, dos nossos serviços públicos, dos nossos direitos, numa marcha furiosa para a guerra que, em último caso, resultará no sacrifício das vidas dos jovens filhos de trabalhadores. Enquanto uns querem mostrar serviço ao patrão americano, apressando comprometer 2% do PIB nacional com a compra de armas ao complexo militar americano, já vem a NATO dizer que nem isso será suficiente e que devemos começar já a pensar em apertar os cintos dos trabalhadores até ao furo dos 5%, qualquer coisa como metade do total gasto na saúde pelo Estado português.
Da mesma forma, quem aqui vier ficar num alojamento local no centro de uma grande ou média cidade e ler ou ouvir as notícias sobre Portugal, nunca poderá imaginar que a praga do arrendamento de curta duração, as rendas altas, a especulação imobiliária, os salários miseráveis e a extrema dependência do turismo são os reais problemas com que se debatem os trabalhadores. Aliás, muitas vezes, nós próprios somos praticamente obrigados a esquecer-nos dos nossos reais problemas, com tantos imaginários problemas que nos vendem nas tvs. Venha a segurança, como se fora possível ter segurança sem salário digno e contrato efectivo de trabalho; venha a guerra, como fora verosímil uma ameaça russa; venha o deputado apadrinhado por ventura e machado roubar malas nos aeroportos; venha todo e qualquer assunto que não toque no essencial para que a revolta se fique pela conversa ordinária do café.
Enquanto a banca, como vimos acima, encaixou 5.3 mil milhões de euros de lucros em 2023 e se prepara para apresentar lucros ainda maiores em 2024 e 2025, enquanto o governo entrega 1 milhão por dia aos grupos económicos em descontos no IRC, enquanto as rendas das casas sobem 10% ao ano, enquanto muitos portugueses são forçados a viver em casa dos pais ou a ficar em quartos arrendados a preços de hotel, a comunicação social e os partidos do arco da nossa desgraça tudo fazem para alimentar as narrativas da distração.
Contra todas as evidências, a habitação é dos poucos problemas reais do país que, por vezes, embora não muitas, alcança alguma atenção e tempo de antena. Isso não estará desligado do alastramento do problema da habitação a grupos e classes que até aqui se sentiam praticamente intocados pela carência habitacional. Ao mesmo tempo, o surgimento de importantes movimentos com expressão de massas foi capaz de disputar alguns minutos de televisão e algumas notícias. Se é verdade que o problema da habitação em Portugal não é de hoje, é igualmente verdade que tem sido a política de favorecimento aos grupos económicos, aos fundos imobiliários e de extrema dependência do turismo e de mão-de-obra barata que tem provocado um alargamento geográfico e social dos problemas de habitação.
Há muito que os operários e suas famílias estavam impedidos de ocupar os centros das cidades. Há muito que dependiam das vias de acesso e dos meios de transporte público para chegar ao trabalho. No entanto, uma grande parte da pequena burguesia ou dos trabalhadores mais bem pagos, pensava ser alheia a esses problemas. Pois bem, está aí a realidade a bater à porta de quem ainda tem casa e a mostrar-lhes que, para o capitalismo, mais vale uma casa abandonada que uma casa arrendada.
O parque habitacional foi alvo de uma estratégia de açambarcamento, concentrado nas mãos de um grupo cada vez mais reduzido de senhorios, ou de fundos imobiliários integrados no sector financeiro, provocando o surgimento de um verdadeiro oligopólio que, não sendo proprietário de tudo, tem capacidade de influenciar os preços de todo o mercado. Ao mesmo tempo, não apenas os governos não impediram o açambarcamento como o estimularam e apoiaram: veja-se a isenção de IMI para edifícios detidos por fundos mas destinados a arrendamento habitacional e veja-se a isenção de IMT para quem compra e vende uma casa num período de três anos.
Portugal tem neste momento mais de 750 mil casas vazias, 150 mil dessas casas na cidade de Lisboa, enquanto a escassez tem sido apontada pelos Governos, antes PS, agora PSD/CDS, como a principal causa do aumento incomportável dos preços de habitação própria e das rendas.
A nova lei dos solos (regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial), cuja revogação foi proposta pelo Partido Comunista Português na Assembleia da República mostra como o capital aproveita todos os momentos para ganhar terreno. Num momento em que a necessidade mais premente é a de aumentar o controlo público sobre a habitação e o parque habitacional, o Governo aumenta a importância dos mecanismos de mercado e da especulação, dando-lhes mais terreno e mais meios para crescer. A possibilidade de converter solos rústicos em solos urbanos não é mais solução para o problema da habitação do que a garantia pública entregue aos bancos sobre as aquisições. Numa das soluções, como na outra, o Governo cria um novo negócio em torno da habitação e do crédito, num momento em que os problemas resultam precisamente da total mercantilização da habitação.
Um pouco por todo o país, movimentos desenvolvem uma luta radicular pelo direito à habitação. Confrontam os lucros da banca com os esforços das famílias no crédito à compra de aquisição, o aumento desmesurado das rendas privadas, a insuficiência gritante dos mecanismos de apoio público ao arrendamento e a falta de apoio à auto-construção e à habitação a custos controlados e a total de ausência de uma política de construção de habitação pública e conduzem essas denúncias para uma reivindicação fundamental: a da concretização do direito constitucional à habitação.
Tomando várias formas, em lutas integradas ou específicas, a luta pela habitação cresceu numa proporção que, infelizmente, ainda não acompanha a dimensão da ofensiva da especulação, do açambarcamento, da concentração e da total mercantilização do sector, mas que se reforça diariamente, amassando o descontentamento em resposta organizada, institucional ou de rua, e converte-se em força material com uma capacidade de intervenção cada vez mais eficaz.
Apesar de as respostas do Governo, quer no plano das garantias bancárias, quer no plano da lei dos solos, serem insuficientes ou mesmo erradas, a verdade é que tem sido esta pressão social o motor para que exista a preocupação no plano político.
De entre as formas de intervenção, destacam-se métodos e objectivos distintos, pesem as convergências evidentes que podem funcionar como impulsionadoras de todas as expressões da luta, acaso não se esgotem na obtenção de resultados de curto prazo ou de curto alcance.
A táctica utilizada para o referendo em Lisboa, apesar da boa vontade, do mérito e do esforço de mobilização e esclarecimento, representou um passo no sentido da semi-judicialização da luta, com todos os riscos que isso comporta, que – como se comprovou – resultou na ideia de referendo local a um direito constitucional, possibilitando as más leituras, enveredando pelo sinuoso caminho da legística e da análise constitucional, chamando a um movimento de base a responsabilidade que cabe ulteriormente ao legislador. Além disso, arrisca dividir os que, partilhando do objectivo, não partilham da solução específica colocada pela aprovação das perguntas concretas.
Pelo contrário, a luta pelo direito à habitação, sem fechamento em soluções únicas, assente na mobilização para a luta de massas, apontando os problemas e caminhos para os ultrapassar sem se enredar na produção de textos legislativos fechados, agrega e alarga, enquanto forma quadros e envolve as populações diretamente no desenvolvimento da luta.
Movimentos como o Porta a Porta, o Vida Justa – mesmo não sendo este focado especialmente na habitação – criam plataformas que aliam o direito à cidade ao direito constitucional à habitação sem a pulsão legisladora e sem submissão a opinião pública, seja ela livre ou contaminada. Aplicamos a isto o mesmo princípio leninista: “os liberais dizem-vos que os trabalhadores são fortes quando a sociedade simpatiza com eles, o marxista diz-vos que a sociedade simpatiza com os trabalhadores quando eles são fortes.”, pelo que são a elevação da participação, a ampliação da organização e a fixação dos objectivos que agregam os factores decisivos para percorrer com sucesso o longo caminho que uma luta exige.
Na caminhada que esta luta nos coloca pela frente também é importante saber que nem todos os interesses colocam os seus objectivos no mesmo patamar. Por exemplo, a luta das camadas mais periféricas em relação aos centros das cidades só pode estar terminada quando a todos os habitantes dos bairros for assegurada uma habitação digna, com acesso aos transportes, ao trabalho, aos serviços públicos e aos espaços da cidade, enquanto que as camadas da pequena-burguesia ou dos trabalhadores mais bem pagos pode ficar satisfeita com a facilidade no acesso ao crédito ou com a diminuição do valor das rendas (justa, necessária, mas de âmbito limitado) ou da taxa de juro.
Enquanto que para uns o problema é o alojamento local que lhes provoca um tremendo aumento do custo de vida, incluindo a sua componente associada à habitação, para outros, o alojamento local é uma ameaça distante, porque não há muitos alojamentos locais nos seus bairros. A resposta definitiva e que faz cumprir o direito constitucional é mesmo a da construção de habitação pública, a do alargamento substancial do parque público habitacional (com um investimento público significativo – como os 1% do PIB que o PCP agora propõe), aliada a uma limitação das operações de alojamento local, disponibilizando imóveis para habitação em zonas centrais ou procuradas e contribuindo para baixar os seus preços, juntamente com o controlo público da banca, assegurando a colocação da banca ao serviço das necessidades do país e dos trabalhadores, libertando os milhares de prédios detidos pela banca e pelos fundos que lhe estão associados.
Só o que dá resposta aos problemas de todos une todos. É natural que a caminhada tenha bifurcações, mas cabe-nos também projectar essas encruzilhadas para o futuro tão distante quanto possível, trazendo os que estão pelos objectivos curtos para a luta pelos objectivos maiores. Caso contrário, não tarda, os que antes já viviam nas cidades poderão continuar a viver (e bem), mas os que não têm casa nem abrem telejornais continuarão a não ter.