É cada vez mais intenso o cheiro a naftalina

Nacional

Nos anos 80 e 90 havia em Portugal um desodorizante que se chamava Impulse. Aquilo tinha um cheiro enjoativo e o produto só terá tido um êxito estrondoso graças aos impactantes anúncios que passavam na televisão, e que ainda hoje ocupam a memória de uma boa parte dos portugueses com mais de 30 anos. Nas várias versões do anúncio via-se uma mulher, que se borrifava profusamente com Impulse – e profusamente não é um exagero: a mulher aspergia-se desde os joelhos até ao queixo (cada embalagem devia dar, no máximo, para uma semana, naquela época ainda ninguém sabia que os aerossóis são inimigos do ambiente). Ela saía então para a rua e causava grandes “estragos”. Aparecia-lhe subitamente um homem que lhe oferecia um ramo de flores. Então ouvia-se: “E se um desconhecido lhe oferecer flores… isso é impulse! … Impulse, só não a protege de um grande amor”. Mas os anos passaram e as portuguesas, vendo que nenhum estranho lhes oferecia flores, desistiram de cheirar a xeltox perfumado e mandaram o impulse à fava. Uma pesquisa rápida mostra que ele ainda existe e anda pela Argentina a enganar as mulheres.


Isto era publicidade, uma forma de propaganda que existe para difundir e promover uma empresa, um produto ou serviço de carácter comercial. Este anúncio representa um trabalho publicitário bastante eficaz e, de lá para cá, a publicidade tem vindo a apurar-se. Hoje, as grandes empresas fazem-se promover recorrendo a marketeers e publicitários altamente qualificados e que têm ao seu dispor todos os estudos de psicologia e estatísticas que sirvam os seus propósitos. A publicidade há muito que deixou de ser só publicidade, influencia não apenas as opções de consumo mas também comportamentos e valores.

Mas propaganda não é só publicidade. Segundo o Priberam, propaganda é o conjunto de actos que têm por fim propagar uma ideia, opinião ou doutrina. Há uma cada vez maior confusão entre propaganda e publicidade, mas também entre informação e propaganda e ainda, entre informação e entretenimento. De facto, todos estes conteúdos mediáticos estão cada vez mais diluídos uns nos outros. E, se por um lado, isto é resultado do refinamento da propaganda e da publicidade, por outro é a consequência de uma crescente falta de ética, mais ou menos condicionada, mais ou menos consciente, dos profissionais da comunicação, isto é, de uma crescente falta de honestidade. Exemplos disto não faltam: desde o product placement nos programas de entretenimento, das notícias encomendadas/compradas por empresas, das notícias que são entretenimento aos anúncios que, ao mesmo tempo que promovem um produto, difundem opiniões sobre outras questões (o anúncio da Antena 1 que, há um anos, passava uma mensagem negativa sobre as manifestações é um exemplo paradigmático) e aos programas de entretenimento que fazem propaganda, mais ou menos descarada (os filmes de Hollywood são pródigos nisto), passando pela vergonhosa e mas cada vez mais intensa, propaganda disfarçada de informação. Tudo são interferências que, para serem devidamente separadas, exigem uma atenção permanente.

Estes fenómenos atingiram proporções tão vastas que, alguns elementos mais escrupulosos dentro do sistema, conseguiram, em 2008, fazer aprovar uma directiva europeia sobre literacia dos media. Nela propunha-se o desenvolvimento de uma componente educativa para que essa literacia se verifique. Estamos em 2014 e pouco ou nada foi feito a esse respeito.

Em Portugal, de há ano e meio a esta parte, redobrou-se a propaganda não do Estado, não do governo, mas do Estado usurpado pelo governo. Não é coisa nova, mas, para quem está atento, é cada vez mais óbvia a promiscuidade entre a chamada comunicação social de referência e a agenda e doutrinas do governo. Nota-se que os conteúdos informativos, e até o entretenimento, são filtrados e, muitas vezes, subvertidos.

E assim é cada vez mais intenso o cheiro, não a impulse, mas a outra substância que também caiu em desuso, a naftalina. Foi aberto o velho baú da propaganda do estado novo e saltaram de lá os manuais que ensinam a glorificação de uma nação desumanizada e de uma cultura abstracta e bacoca, os heróis, o culto da caridade, a ampliação desmesurada da importância de alguns feitos, o corporativismo e a eleição de um ou mais inimigos públicos, a moralidade hipócrita, as distracções fáceis e de massas, o silenciamento dos problemas e a censura. Os promotores do pensamento dominante começaram a andar com esses livros debaixo dos braços e o cheiro espalhou-se.

E esses senhores, que também terão sacado do mesmo baú os fatos pretos e a brilhantina, leram nos manuais o culto ao Eusébio e resolvem resgatá-lo, mandam fazer anúncios enaltecendo que a bola de ouro “é portuguesa”, e à falta de um SNI e de um Almada Negreiros, arranjaram uma Joana Vasconcelos, Resgatam também os painéis de São Vicente e metem a sua ponta de lança, Fátima Campos Ferreira, como anfitriã da orgia da baba sobre o património artístico, o fado e o turismo de Lisboa. E o climáx deu-se: a CNN diz que “Lisbon deserves consideration as Europe’s coolest capital.” Nada como a aprovação do principal meio de comunicação social da ordem mundial para sedimentar o orgulho nacional. Toca de varrer para baixo do tapete todos os problemas. O primeiro-ministro tem de passar por homem avisado e razoável, alerta que apesar dos sinais animadores, os problemas não vão acabar. É uma nova forma de Portugal ser um país católico: o sofrimento é uma dádiva. Mas regozijemo-nos. Fazem-se galas por tudo e por nada e não havendo nem mundo português, nem a respectiva exposição, todos os fins-de-semana há espectáculo televisivo em cada uma das cidades do nosso Portugal. Elogiam-se os que fazem sapatos artesanais, os que inventam sandes de cozido à portuguesa e feijoada transmontana, os que emigraram e são felizes. Já não damos novos mundos ao mundo mas vamos por esse mundo espalhando a portugalidade. Um luso-descendente ganhou um grammy, que orgulho! Um português fez de Jesus Cristo numa série norte-americana que, por cá, ninguém viu, que orgulho! Inventam a ideia da “marca Portugal”. Seja lá o que isso for, é importante que estejamos todos lavadinhos e sorridentes quando nos vierem visitar: o país está à venda e precisa de ser bem apresentado com um bonito selo do galo de Barcelos.

Hoje no Público pode ler-se: Jerónimo de Sousa acusa Governo de “propaganda”. Tem toda a razão, é propaganda. E as aspas também.