Crónica de uma pergunta anunciada

Nacional

Há coisas inevitáveis. Perguntas, sempre as mesmas perguntas, não o são. E não há uma greve em que nos media não saia a questão, sob diversas formas, como se fosse a fundamental: “Em que medida é que esta greve o prejudica?”.

A outra questão crónica é perguntar se “concorda com os motivos da greve”, em lugar de procurar saber, primeiro, se sabe quais os motivos da greve, mesmo antes de concordar ou discordar com ela.

Na TSF, hoje, ouvi a melhor resposta à pergunta da praxe – desculpem não falar sobre o não-assunto do momento. “A greve não me causa transtorno, causa-me transtorno ter de emigrar”, respondeu uma jovem. “Vou aproveitar as duas horas de atraso para estar com a família”.

Na Crónica de Uma Morte Anunciada, Gabo relata a história da vila de Riohacha, em que toda a gente sabe que Santiago Nasar será morto por ter tirado a virgindade a Angela Vicario. Os próprios assassinos, irmãos de Angela, desdobram-se em esforços para que alguém os tente impedir de fazê-lo. No entanto, ninguém foi capaz de avisar Santiago, por não acreditarem que o matariam ou por simples indiferença. Talvez seja este o papel que hoje é desempenhado pelos jornalistas: esperar que alguém lhes dê a resposta vista como errada à pergunta estúpida que acham que têm de fazer.

Perguntar a alguém que está à espera de um avião, autocarro, táxi se o facto de não poder usufruir dos serviços os transtorna não é jornalismo. É estúpido. É como perguntar a um mergulhador se a água está molhada. É redutor e, conscientemente ou não, é formatador da opinião dos ouvintes. Porque os terríveis grevistas não deixam as pessoas trabalhar e causam enormes transtornos.

Que me recorde, nunca ouvi perguntar qual o transtorno que uma greve causa a quem a faz. Qual o impacto no seu rendimento no final do mês. Claro que há-de haver sempre um João Miguel Tavares a afirmar que conhece quem faça greves às sextas ou segundas-feiras porque fica de fim-de-semana prolongado. Acredito que sim. Acredito até que o JMT conheça pessoas a quem perder um dia de salário não faz falta. Ou uma semana. Ou um mês. Ou quem nunca tenha trabalhado e viva à custa do trabalho dos outros. Mas isso já é dos meios em que se move.

Talvez os haja. Como há quem goste de ter bolas de bilhar enfiadas na boca durante o sexo enquanto levam tareias. Mas isso é lá com cada um – pelo menos até que a JSD, pela voz o deputado Hugo Soares, decida referendá-lo, uma vez que, segundo o próprio, todos os direitos fundamentais podem ser referendados. O direito a ser um imbecil também.

No romance, de 1981, Gabo pega em 2014 e descreve-o: fomos e somos constantemente avisados sobre o que vai acontecer na saúde, na educação, nos direitos. Mas optamos por ignorar os sinais que todos os dias nos são enviados de restrições dos direitos mais básicos, como em Espanha, Alemanha, Irlanda, França, entre outros, e o avanço de um fascismo reconfigurado que ganha terreno por toda a Europa. Teimamos é em não acreditar que pode acontecer-nos o que aconteceu a Santiago Nasar.