E no entanto ela estupidifica-se

Nacional

Fica desde já a nota e em jeito de aviso prévio: se alguém, por acaso, estiver aqui à espera de um artigo que tente normalizar, inocentar ou desculpabilizar, directa ou indirectamente, o 1 milhão de votantes – e nem que fossem 50 milhões… – num partido de extrema-direita em pleno século XXI, pode, desde já, tirar o cavalinho da chuva. Se alguém estiver à espera da narrativa ou teoria de que «isto é só gente indignada» ou «revoltada», pura na sua sacrossanta ingenuidade, que saiu de casa, naquele dia, para ir «inocentemente» colocar um voto num partido de gente que acha que o lugar dos pretos é em África, que o dos gays é numa ala psiquiátrica, que o das mulheres é na cozinha, que as vacinas são chips e/ou transformam pessoas em jacarés, que os ciganos devem ser deportados, ou de que no tempo do fascismo, da fome, da censura, da polícia política «é que isto era bom», pode já parar por aqui. Porque aquilo que aqui se dirá, ou escreverá, a respeito de o que se passa não apenas em Portugal, mas em muitas outras latitudes do mundo actual é que não há outra forma objectiva, concreta e factual do que chamar «estupidificação colectiva» àquilo que é, de facto, «estupidificação colectiva», ou «fascização crescente e progressiva das sociedades» àquilo que é, indiscutivelmente, a «fascização crescente e progressiva das sociedades».

O mundo de hoje não está voltado para o conhecimento. O mundo de hoje está voltado, precisamente, contra ele. As sociedades capitalistas afrontam os pressupostos científicos, negam-nos, conduzem tudo e todos para o universo da mentira, para a ignorância, para a deturpação, para a descontextualização, para a confusão propositada e voluntária das discussões, para o dichote fácil, para o embrutecimento geral, reforce-se, do indivíduo. Nos tempos correntes, não se procura sustentar uma convicção sólida baseada em quaisquer princípios de natureza filosófica ou ideológica. Não se valoriza – antes se combate – o pensar, o reflectir, o estudar com critério todos os assuntos. Por outro lado, as convicções do mundo de hoje formam-se a partir de um vídeo de 30 segundos numa qualquer rede social. Não se lê um livro, não se lêem, sequer, textos com mais do que um parágrafo. Consomem-se memes, imagens com soundbytes, clips com ditas «verdades» que são até, na maioria dos casos, autênticas e completas «mentiras». Em qualquer ponto do mapa cibernético, há-de estar, porém, uma qualquer referência que sustente aquilo que se «quer» que seja verdade. Quando a mentira encaixa naquilo que, por várias razões, traumáticas ou não, se quer voluntariamente acreditar, a mentira passa a ser assim o guia da acção. Incluindo, naturalmente, a acção política, a militância e o voto.

Estaríamos todos bem mais descansados, com a vida mais facilitada ou, pelo menos, mais esperançosa, acaso houvesse, porém, uma só causa, uma só razão, para justificar todo este tenebroso contexto. Mas não há só uma causa. Há várias e são complexas. E uma delas terá que ver com aquilo que se quereria, ou desejaria, fosse a verdadeira casa da formação e estruturação do indivíduo: o ensino, a escola. Os sistemas e serviços educativos não têm conseguido acompanhar a velocidade da tecnologia. O ensino não tem pernas para combater, desmentir, explicar, superar, a doutrinação que é incutida pelas máquinas. O capital ainda não consegue, ou tem pelo menos muito mais dificuldade, em doutrinar através do ensino tradicional. Mas consegue, por outro lado, com toda a facilidade e com meios muito mais cativantes, impor determinado pensamento, determinados conceitos ou preconceitos, uma suposta «informação» que, tudo somado, vai significar a construção de um indivíduo não-pensante, acrítico, acientífico, um indivíduo-produto, serventuário e iludido.

A forma como a educação é suplantada pela tecnologia é, pois, uma parte deste problema. Alia-se, também, à falibilidade dos conteúdos que os tempos exigem, à falta de consciência histórica que daí emana – porque, naturalmente, eles não sabem, não viveram, o que foi o fascismo –, tudo fazendo com que a expressão «valores de Abril» diga zero a uma franja enorme dos jovens e dos menos jovens. Sem memória, sem consciência, sem instrução, mas com bombardeamento cibernético diário controlado pelo sistema capitalista, fica criado o caldo mental que leva à já citada estupidificação da sociedade, muito conveniente aos interesses que ganham com partidos e/ou governos de extrema-direita.

De uma sociedade estupidificada, não se podem esperar actos inteligentes, decisões acertadas e governantes competentes. Não se pode esperar uma governação justa, vinda de um sistema que só funciona se houver, precisamente, injustiça social, económica e financeira. O capital promove a iliteracia, o baixo grau de conhecimento, a desilustração, a falsidade, porque quanto mais maleável, manipulável, enganada e iludida estiver a massa que constitui a base da sua riqueza exploratória, mais e melhor proveito terão com isso os seus mandantes e beneficiários.

Não se pode, pois, neste estágio e no rumo que se segue, esperar resultados de progresso, mas antes e obviamente as consequências de políticas de retrocesso. Não haverá fórmulas mágicas capazes de inverter a situação, mas uma coisa nos parece certa: ter medo das palavras, negar a estupidificação massiva em curso, negar por algum decoro a fascização das sociedades, insistir na brandura das «compreensões» como modo de enfrentar quem tem, cada vez mais, os braços estendidos e os punhos cerrados, é capaz de ser tão eficaz como pregar no deserto.

2 Comments

  • A Machado Saraiva

    19 Março, 2024 às

    Estou nessa! Questões complexas, mas já há muito tempo o outro alertou que “toda a ciência seria supérflua, se a essência e a aparência das coisas se confundissem”, o conhecimento não é pois defensável pelos ‘poucos” já há muito empenhados no controle da mente dos “muito mais…” , por outro lado, ” enquanto o ouro duns ( poucos) continuar a ser o suor dos outros,
    “muito mais”, o chão que se pisa vai ser sempre fonte de revolta…o subjetivo e o objetivo vão acabar por se encontrar…

  • CRISTIANO RIBEIRO

    15 Março, 2024 às

    UM MUITO BOM TEXTO . BRAVO, IVO!

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