Agora que já tenho a vossa atenção, gostaria de dizer duas ou três coisas sobre o assunto. A primeira vez que ouvi falar de uma barbearia que só atendia homens e cães pensei «ok, tá fixe». Mas a chave estava aqui: atendia.
Ao ler textos de gente despreocupada que escreve sobre moda e de repente usa o termo neomachista porque ficou de fora de um símbolo da cultura pop e não pode ir cortar o cabelo não sei bem onde acabei por não perceber exactamente do que se tratava.
Ao ver a acção do colectivo Interpolação Feminismos, cuja página de Facebook foi denunciada e já não está disponível (sem comentários) prestei atenção ao assunto e apercebi-me de que a questão nada tem a ver com a prestação de serviços. Tem a ver com a proibição de entrada no espaço. Que sendo privado, é aberto ao público. Não preciso de ser feminista (que não sou) nem de ser mulher para perceber a gravidade da questão.
Chama-se segregação, discriminação e crime.
Artigo 240.º – Discriminação racial, religiosa ou sexual
1 – Quem:
a) Fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género, ou que a encorajem; ou
b) Participar na organização ou nas actividades referidas na alínea anterior ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento;
é punido com pena de prisão de um a oito anos.
(…)
É a redacção do Código Penal.
E o que as criaturas exibem como conceito ou estratégia comercial é um crime. Claro que, tratando-se de mulheres facilmente se perguntará: e os ginásios, os spas e por aí fora? Bem, a diferença, uma vez mais, estará entre prestação de serviços e admissão de entrada. E, tratando-se de mulheres, facilmente se terá a reacção que eu própria tive «não deve ser bem assim, devem estar a exagerar».
Não, não estão: o autocolante à porta tem 3 figuras. Um homem, um cão e uma mulher. Sobre a mulher está uma cruz. Mulher não entra. Claro, se fosse «Preto não entra», «Cigano não entra», «Pobre não entra» a mesma situação causaria muito mais incómodo. Seria evidente a discriminação. Pergunto-me: como não é evidente – por se tratar de mulheres? Por que é que a reacção imediata é a relativização do assunto? Por um lado pelo absurdo que é conceber sequer que se proíbe a entrada de uma mulher onde quer que seja. Por outro lado: «nunca fui discriminada por ser mulher, bem pelo contrário». Por outro lado: misoginia.
Porquê? Alguns – note-se aqui: alguns – dos que se indignam com esta discriminação inaceitável não se indignam com a violência e ilegalidade das discriminações salariais, das violações dos direitos de maternidade, com os patrões (particularmente nos hipermercados) que pedem às mulheres que ponham as mamas de fora para provarem que estão a amamentar, com os horários de trabalho incompatíveis com a participação social e política, com leis laborais criminosas e por aí adiante. Gostava (muito) de ver uma invasão a um banco, pela forma deplorável como tratam as trabalhadoras deste sector. Mas fazem desta barbearia o alfa e o ómega.
Porquê? Alguns entendem que a gravidade não é assim tanta por serem mulheres que não podem entrar e cortar o cabelo num determinado sítio (e veja-se a gravidade de toda a frase), vão cortar a outro, também não é por aí. Pois.
Porquê? Porque ainda se nega a existência de discriminação em função do sexo ou identidade de «género». E ela existe e tem várias gradações consoante a classe (e aqui, lamento mas não concedo, a mulher burguesa não é discriminada na mesma medida e forma que uma mulher operária).
E com tudo isto, a acção da Interpolação Feminismos põe o dedo na ferida. Em Lisboa, século XXI, uma barbearia proíbe a entrada de mulheres. E, aparentemente, é coisa de somenos. Talvez nos obriguem a sentar no banco de trás dos autocarros. E se formos pretas talvez nem possamos votar.