Emergência e submissão: “Die Welle” e o apelo da extrema-direita (Parte I)

Nacional

Embora não possamos apontar, com certeza, quando recomeçou a ascensão dos movimentos de extrema-direita – uns mais orgânicos, sustentados em partidos políticos, e outros menos -, tendo em conta que parece não existir propriamente uma quebra nas suas manifestações desde a II Guerra Mundial e a experiência do nazi-fascismo na Europa até hoje, é inegável que o evoluir da situação social e política em cada país da Europa (e fora dela) trouxe ferramentas e discursos novos a estes movimentos.

Se durante a II Guerra Mundial existiram discursos que os tornaram cada vez mais afunilados em torno de questões raciais e étnicas – onde o exemplo da questão judaica tomou proporções históricas – hoje os alvos da retórica dos movimentos de extrema-direita parecem alargar-se a um mais amplo conjunto de questões, muito embora uma leitura mais atenta encontre pontos comuns nas críticas ao sistema económico e político de agora às mobilizações em torno dos movimentos extremistas da altura, bem como um combate aberto à esquerda política e a todas as suas propostas.

Partindo do filme “A Onda”, realizado por Dennis Gensel em 2008 (Die Welle, título original), baseado num livro e numa experiência real levada a cabo por um professor norte-americano, conhecida como Terceira Onda, esta reflexão tentará encontrar pontos de partida para a explicação da facilidade de ascensão dos movimentos de extrema-direita, ou para o seu ressurgimento. Nesta primeira parte do texto, e baseando-nos em exemplos bem explorados no filme alemão de 2008, exploramos pistas da psicologia social no enquadramento dos intervenientes nestes processos, bem como as complexidades da relação com o discurso extremista. Numa segunda parte, exploraremos as questões de ordem social e política que parecem predispor determinadas alturas da História a um ressurgimento desta ideologia e destes movimentos.

“A Onda”- o filme

Professor Rainer, quarenta e poucos anos, cabeça rapada e t-shirt da banda The Ramones. É esta a personagem principal do filme “A Onda”, que parte de uma experiência social realizada com uma turma durante um projeto de uma semana numa escola secundária. Certo que iria ficar com a aula de Anarquia, Rainer é surpreendido com a decisão da diretora da escola quando esta escolhe um colega mais experiente para dirigir esse projeto, pelo que fica encarregue de planear, então, a aula de Autocracia.

A primeira aula decorre dentro do que parece ser o normal entre os alunos que se inscreveram nela, numa relação de proximidade com o professor, que é também treinador da equipa de pólo aquático da escola. Neste primeiro dia, estabelecem-se os conceitos de autocracia em debate. É durante este debate que surge uma importante pista para a experiência social que se lhe segue, quando entre exemplos de Estados autocráticos os estudantes se veem obrigados a falar do III Reich e as opiniões se dividem entre a necessidade de falar sobre essa fase da História da Alemanha ou deixar de se sentirem culpados por algo do qual não fizeram parte. Entre todos, concordam, ainda assim, que não seria possível uma experiência como essas voltar a ocorrer no seu país. “De maneira nenhuma, isso está resolvido”, conclui um dos alunos.

A partir da segunda aula, o professor começa a organizar a turma de uma forma diferente e define quem se senta ao lado de quem, em filas orientadas para a frente, onde se encontra o professor (na primeira aula os estudantes estavam espalhados em grupos, virados uns para os outros). Com pequenas alterações a cada dia que passa, como a necessidade de escolher um líder para o seu grupo – sendo eleito Rainer – e de o começar a tratar com maior deferência, a terem que pedir-lhe autorização para falar, impondo maior disciplina no decorrer das aulas, o grupo chega a definir um uniforme – calças de ganga e camisas brancas – e um símbolo para usar como saudação.

As reações a todas estas exigências são diversas, desde uma aluna que desiste na segunda aula e se inscreve no projeto de Anarquia, a dois alunos que desistem para mais tarde se voltarem a juntar ao grupo até ao aluno que rapidamente assimila a disciplina e as regras do grupo recém-criado.

É em torno das relações entre os estudantes, em grupo, e aqueles que se recusam a obedecer às suas regras que o filme se desenvolve, dando ênfase às características da personalidade de cada um e à forma como essas se relacionam com a postura que assumem ao longo da experiência.

Perto do final da semana, Rainer começa a ser confrontado, quer pela diretora, quer por uma das estudantes da turma, que começa a ficar desconfortável com o comportamento do grupo ao ponto de o denunciar no jornal da escola, espalhando panfletos durante um jogo da equipa de pólo aquático. Ao mesmo tempo, o professor é visitado em casa pelo aluno mais dedicado ao grupo, de personalidade mais reservada e com problemas de relacionamento com a família, que começa a ver no professor um verdadeiro mentor.

No desfecho do filme, Rainer confronta a turma com os seus comportamentos e com a facilidade com que se deixaram influenciar pela noção da disciplina e do poder, dando a experiência como terminada – com reações novamente diversas entre os estudantes.

O filme parece voltar, no seu final, àquela primeira questão de debate sobre a impossibilidade de se repetir, na história da Alemanha, um regime autocrático e de ideologia nazi. Através de pequenos ajustes feitos a uma turma, numa proposta de apenas uma semana e com o objetivo de tornar a aprendizagem mais participativa, Rainer cria um grupo que age e reage segundo as ordens de um líder, sem questionamento por parte dos seus membros, que têm relações de diversas intensidades com a própria experiência, mas que passam a aplicar nas suas vidas pessoais, fora da escola, observando-se diferentes níveis de interiorização do seu funcionamento.

Embora o grupo em questão, no filme, não se crie em torno de uma ideologia, há momentos em que alguns elementos do grupo se posicionam automaticamente como inimigos de outros estudantes da mesma escola – como o caso de dois alunos anarquistas -, repudiando a sua imagem e o seu comportamento. Afigura-se, assim, curioso e, ao mesmo tempo, assustador que se consiga criar de forma tão rápida um corpo tão homogéneo e obediente, unido por vontade e direção alheias.

Questões da psicologia social

Observando a flutuação de comportamentos do grupo focado no filme, podemos recorrer à psicologia social para melhor tentar compreender que tipo de fenómeno – ou fenómenos – podem explicar a facilidade com que, indivíduos que, à partida, partilham experiências e contextos diversos, se tornam num grupo hermético e altamente disciplinado.

A influência socia foi definida por Secord e Backman em 1964 como sendo o momento em que as ações de uma pessoa condicionam as ações de outra (Garcia-Marques, 2006). A definição de influência social pressupõe, então, uma alteração num determinado comportamento por ação, sugestão ou comparação com outro sujeito – e, naturalmente, pelo seu comportamento. Ainda assim, Leonel Garcia-Marques acrescenta que esta presença do outro não tem que ser necessariamente real, ou seja, bastará que ela seja suposta ou assumida (Garcia-Marques, 2006). Sem nos alongarmos sobre as várias teorias que se debruçam sobre a influência social, centremo-nos apenas nas conclusões das experiências de Musafer Sherif, Solomon Asch e Stanley Milgram.

Experiência de Sherif

A experiência de Sherif surge a partir do pressuposto de um conceito da psicologia de quadro referencial, que consiste na necessidade de cada sujeito organizar as suas experiências e criar significado em torno do que o rodeia (Garcia-Marques, 2006) e no sentido de comprovar como se relacionam estes quadros de referência individuais, que se prendem com as atitudes e as crenças, com os quadros de referência sociais, que representam as normas grupais e culturais (Garcia-Marques, 2006).

Num laboratório às escuras, Sherif preparou uma experiência sensorial em que o sujeito crítico, ou seja, o sujeito a ser avaliado, participava ora só, ora acompanhado em grupo por dois comparsas do investigador (Garcia-Marques, 2006), com a pretensão de apresentar a este sujeito crítico um ambiente com o mínimo de referências possíveis, por um lado, para perceber de que forma ele sentiria a necessidade de encontrar um quadro de referência pelo qual se orientar e, por outro, o contraste entre a sua perceção e a do grupo.

A experiência de Sherif desenvolveu-se em diferentes fases e foi introduzindo diversas variáveis que não importará agora explicar, no entanto as suas conclusões demonstram que os sujeitos necessitam organizar a sua experiência mesmo quando não necessitam e que o comportamento dos outros sujeitos é decisivo na criação de quadros de referência por onde se guiar (Garcia-Marques, 2006).

A partir destes aspetos das conclusões de Sherif podemos confirmar que os processos de conhecimento e de reconhecimento do sujeito dependem em grande parte da confrontação com o outro, havendo um processo de organização da realidade que une indivíduos e grupos na transformação de “uma realidade incerta num todo coerente” (Garcia-Marques, 2006, p.236).

Experiência de Asch

A experiência de Asch, por seu lado, ocorre numa tentativa de se afastar de uma perspetiva geral, comum a diferentes autores da psicologia e da sociologia, chamada de sonambulismo social. Esta corrente entende que a realidade social é convencionada, assim como as noções do que é certo e do que é errado, e que os processos de imitação são a chave para a explicação dos comportamentos humanos (Garcia-Marques, 2006). Para Asch, esta perspetiva esquecia o papel ativo e interpretativo dos sujeitos, bem como as diferentes vias que a influência assume, ao invés de ser unilateral.

Asch desenvolve então uma experiência em que um sujeito crítico é incluído num grupo de comparsas do investigador e onde cada um responde, individualmente e por ordem, perante o grupo. O objetivo é responder, numa série de imagens mostradas em dois cartões, qual a linha, de entre três opções do cartão colocado do lado direito, que corresponde à linha desenhada no cartão do lado esquerdo. As medidas apresentam-se de tal forma que é evidente qual a linha correta na grande parte dos casos, respondendo o grupo bem nas primeiras rondas, mas começando a cometer erros a partir de determinada altura – erros por vezes moderados, por vezes extremos.

As conclusões desta experiência, realizada também com a inclusão de diferentes variáveis, divide os sujeitos em dois grupos: os conformistas e os independentes, de acordo com o número de vezes que cedem às respostas do grupo e erram a resposta, sendo mais conformista aquele que erra um maior número de vezes e mais independente o que erra menos. Entrevistas pós-entrevista permitiram dividir estes dois grupos em subcategorias, dependendo do motivo que o sujeito crítico apresentava para se ter conformado ou não, no entanto não entraremos nesse detalhe. A maioria dos sujeitos críticos situava-se no grupo dos conformistas.

Destacamos apenas duas variáveis que Asch introduziu na experiência: o carácter público vs o carácter privado da experiência e a correlação entre maioria e minoria. No primeiro caso, o número de respostas erradas diminuía se o sujeito respondesse em privado, escusado de dar a sua resposta no grupo. No segundo caso, se apenas existisse um comparsa num grupo de sujeitos ativos, este não exercia nenhuma influência junto destes. A mesma anulação do conformismo surgia quando no mesmo grupo se confrontava um grupo de comparsas com um de sujeitos ativos, destacando-se aqui o papel dos aliados e da quebra na unanimidade do grupo (Garcia-Marques, 2006).

Sherif e Asch em “A Onda”

Tendo presentes ambas as experiências de Sherif e de Asch, torna-se possível avaliar – dentro destes parâmetros e assumindo como passíveis de generalização para a sociedade as conclusões dos dois investigadores – as diferentes reações dos estudantes da turma de Rainer no filme “A Onda”. Numa manifestação de personalidade independente, a aluna que, na segunda aula, abandona a turma por não considerar razoável o conjunto de regras que começam a ser impostas. Numa manifestação de personalidade conformista, o aluno que rapidamente assimila essas regras e as transpõe para o que se poderia considerar o carácter privado dos seus comportamentos. A mudança comportamental que se observa na generalidade dos alunos coincide com ambas as conclusões, tanto da necessidade de criar referências que possam organizar a realidade, como na influência do grupo na mudança de comportamento.

O caso de Karo, a aluna que se mantém na turma mas que se recusa a vestir a camisa branca do uniforme e que, entretanto, se opões às regras e às consequências do grupo, parece aproximar-se da flutuação que a experiência de Asch observa com a introdução de aliados, com quem o sujeito partilha a responsabilidade de resistência à influência do grupo, já que Karo encontra noutros estudantes o mesmo tipo de apreensão face ao comportamento da turma (Garcia-Marques, 2006).

Experiência de Milgram

Já a experiência de Milgram tenta compreender até onde vão os sujeitos que se limitam a obedecer a ordens – um pouco mais próxima da perspetiva do sonambulismo social que Asch tentara contradizer. Esta avaliação parece-me especialmente pertinente no que diz respeito à reflexão sobre o fenómeno do nazi-fascismo durante o III Reich na Alemanha e o Holocausto, tendo em conta que, ao contrário das anteriores experiências – que mediam a influência social usando instrumentos de perceção e de informação – esta implica a perceção de se causar dano a outro sujeito fruto da obediência a ordens por parte de uma autoridade.

Milgram juntava um sujeito crítico e um comparsa na mesma experiência. Ao sujeito crítico era sempre atribuído o papel de professor e ao comparsa de aprendiz, sendo que este era supostamente preso a uma cadeira elétrica e ligado a gerador. O sujeito crítico era então colocado numa sala contígua e tinha ordens para aplicar choques elétricos sempre que o aprendiz, que não podia ver nem ouvir, errasse uma resposta, devendo aumentar 15 volts por cada resposta errada seguinte.

As respostas eram dadas através de um painel luminoso e o gerador continha 30 interruptores com voltagens diferentes, identificados com a voltagem correspondente a cada e divididos entre choque fraco a choque severo, reservando apenas uma etiqueta a dizer XXX às voltagens entre 435 volts a 450 (Garcia-Marques, 2006).

Durante a experiência, o aprendiz continuava a responder sem se manifestar até aos 300 volts. Nessa altura começava a bater audivelmente na parede e a partir daí deixava de responder. A experiência exigia que a ausência de resposta se considerasse uma resposta errada, pelo que o sujeito devia continuar a fazer as perguntas e aplicar os choques (Garcia-Marques, 2006). Ao lado do sujeito crítico permanecia o investigador, instruído para responder, sempre que o sujeito demonstrasse querer parar ou questionasse se tinha que continuar a aplicar os choques, que era obrigatório continuar e que era necessário para a experiência em quatro incitamentos. Se após esses quatro o sujeito insistisse em parar, abandonava a experiência (Garcia-Marques, 2006).

Os resultados desta experiência ultrapassaram de forma inimaginável os previstos por duas amostras a quem foi pedida uma previsão. Uma amostra de quarenta médicos psiquiatras entendeu que apenas a percentagem correspondente à de psicopatas na sociedade americana da altura terminaria a experiência, aplicando os 450 volts (0,2%) (Garcia-Marques, 2006).

Dos 40 sujeitos críticos que participaram na experiência, 26 aplicaram os 450 volts, indo até ao fim, e 35 do total de sujeitos ultrapassou os 300 volts, a partir de quando o aprendiz deixava de responder (Garcia-Marques, 2006). Importa referir que apenas no final da realização da experiência era explicado ao sujeito crítico que o aprendiz era um comparsa do investigador e que o gerador não era capaz de produzir mais do que 45 volts, utilizados no sujeito crítico logo no início da experiência, quando lhe era explicado que tinha como objetivo compreender qual o grau de punição mais eficaz na aprendizagem dos adultos (Garcia-Marques, 2006).

Milgram em “A Onda”

No filme, embora durante a semana do projeto de autocracia exista um momento de envolvimento em violência física com um grupo de anarquistas, é um dia depois de a semana terminar, numa assembleia no auditório da escola que Rainer convoca para decidir o futuro do grupo, que podemos comprar com a experiência de Milgram.

Marco, namorado de Karo – a aluna que assumiu publicamente a sua oposição ao grupo -, tenta convencer Rainer a terminar a experiência depois de assumir que no dia anterior, numa discussão com a namorado, lhe bateu. No dia da assembleia, depois de um discurso nacionalista apaixonado de Rainer, em que explica o que aconteceu durante aqueles dias, todos aplaudem menos Marco, visivelmente incomodado.

As salas do auditório estão trancadas e Tim, o aluno que mais lealdade demonstrava ao grupo e maior dependência dele também, permanece como segurança junto de uma das portas. Marco é trazido para a frente do auditório por alguns colegas, para junto de Rainer, que questiona um deles o que deverão fazer para castigar Marco, já que foi ele que o trouxe até si.

O rapaz responde que apenas o fez porque Rainer o ordenou, e é nesse momento que o discurso de Rainer dá uma reviravolta, questionando porque obedeceram e se também obedeceriam se ele lhes dissesse para o matar, tentando fazer o grupo perceber no que se tinha transformado.

No momento em que o professor aconselha os alunos a irem para casa e refletirem sobre o que ali se passou, todos aceitam menos Tim, que se sente enganado e manipulado e que aponta uma pistola ao grupo, admitindo que sabe que sempre foi menosprezado por todos. Tim acaba por se suicidar no auditório.

Submissão

Existe, durante todo o filme e até este momento do final, uma variação nos comportamentos dos principais alunos membros do grupo “A Onda”, demonstrando as necessidades de estabelecer compromissos entre as crenças pessoais e as normas sociais do grupo – fator que a experiência de Asch também leva em conta – em alguns casos, ou aceitando totalmente a influência da autoridade, como Tim.

Conseguimos estabelecer algumas relações entre os diversos olhares que as experiências referidas nos trazem sobre os processos psicológicos que parecem ter mais peso na procura de compreensão do mundo junto do outro. Desde evitar sentir-se rejeitado às necessidades de maior ou menor dependência de um grupo, estas características estão espelhadas nas personagens deste filme, mostrando-nos pistas importantes da personalidade de cada um – mais independentes ou mais conformistas – e dos sistemas de crenças e valores também apresentados no filme, tendo todos um papel na mudança de comportamentos e na influência social, aproximando-se, em determinada medida até, à teoria do sonambulismo social, que mesmo a experiência de Asch não conseguiu afastar totalmente.

Voltando um pouco atrás no filme, na segunda aula a turma define o que é mais importante numa autocracia e numa ditadura. Uma figura modelo, ou um líder e como princípio básico, disciplina. Ao mesmo tempo, identificam as condições estruturais para uma ditadura, chegando à conclusão que elas são: uma alta taxa de desemprego e injustiça social, inflação alta, indiferença à política e nacionalismo extremado. É justamente sobre uma visão sociopolítica dos movimentos de extrema-direita que nos debruçaremos na segunda parte deste texto.

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