Há coisas que não se perdoam, mesmo àquelas pessoas que consideramos as melhores no que fazem. E eu sou péssimo a perdoar, mesmo reconhecendo razão à minha professora de inglês do 10.º ano, Luísa Félix, quando me confrontou com a questão evidente: “Mas não gostas de ser perdoado?”.
Gabo é imperdoável. O que ele fez não se faz à Humanidade, essa coisa estranha daquelas partes do mundo onde há pessoas humanas, expressão que roubei descaradamente a uma amiga.
Este não é um dos milhares de textos que hão-de ser escritos nos próximos dias. Ainda menos tem a pretensão de ser crítica literária. Este é um texto manifestamente egoísta. Este é um texto sobre o meu Gabo. Do Gabo cujas palavras fluem nas páginas de uma forma inigualável. Um encadeamento tão brutal que faz da prosa poesia, da vida ficção e embala-nos de uma forma tão indescritível que só apetece ficar acordado para desfrutar dela em lugar de adormecer.
A morte é, objectivamente, uma merda, na maioria dos casos. E não falo da de Gabo, falo da nossa, comuns mortais que serão esquecidos e, agora, já nem sequer lembrados em fotografias amarelecidas e escondidas no fundo de gavetas, para que quem cá fica pegue nelas e pergunte “como se chamava este”? Quando muito, seremos lembrados em fotografias digitais, esquecidas numa pen ou num disco rígido. Novas como se fossem tiradas hoje, com uma resolução xpto e um filtro catita. E isso assusta-me.
Eu quero estar no fundo da gaveta e ser esquecido como fomos sempre todos, os comuns.
Nós devíamos ter um prazo de validade. Nada de muito elaborado. Sem códigos de barras nem embalagens. Um prazo de validade como o de uma peça de fruta que cai junto da árvore e fica ali à espera de voltar à terra que a fez brotar. Assim saberíamos quando ler Gabo.
Não posso perdoar Gabo pelo que me fez. Ler Gabo quando se é relativamente novo coloca-nos enormes problemas para toda a vida. Tudo o que se ler a seguir não chega perto, sequer. Por muito bom que seja, não será maravilhoso.
O Amor nos Tempos de Cólera. Como pode ler-se este livro e, a seguir, ler outro qualquer sem tê-lo como termo de comparação? A nossa morte devia vir com aviso. As frutas começam a apodrecer aos poucos, como nós, até se desfazerem. Mas elas sabem que, depois de caírem da árvore, poucos lhes resta. E era nessa altura que devíamos ler Gabo. Morreríamos felizes e realizados, cheios de sonhos e paixão, com a certeza de que tínhamos guardado o melhor para o fim.
E morríamos todos nos braços de Florentino Ariza e Fermina Daza. Morríamos com uma crueza tão pura que só seria possível num mundo ideal. Gabo morreu hoje e só posso agradecer-lhe por tudo. Mas não lhe perdoo.