Hoje farias 55 anos, Pai

Nacional

Farias 55 anos. Recordo-me de dizeres que começaste a trabalhar aos catorze. Recordo-me das histórias de quando, durante o fascismo, tu e os teus irmãos comiam pão (se o houvesse) e uma sardinha. E que a avó escondia o pão debaixo da terra. Lembro-me das histórias de atirares os gatos para o meio das silvas. E de ver-te a atirar gatos para veres se caíam de pé. Lembro-me das horas que passava a olhar os vinis na tua loja, esperando um dia estar ao teu lado a falar sobre eles. Lembro-me de esperar horas pelo teu programa na rádio pirata e da tua frase «esta é para a minha baixinha». Não acertaste na música e eu nunca te disse. Lembro-me do primeiro jogo nas Antas, em que ganhámos ao Sporting e fomos comer bifanas a seguir.

Lembro-me de todos os carros velhos que me davas que eram os únicos brinquedos de que gostava. Lembro-me do clube de vídeo. O primeiro. Da única vez que foste ao infantário de mota buscar-me. Estive quase 16 anos longe de ti. Até que a vida nos reaproximou, para nos afastar pouco depois. Quando regressei, construímos a nossa amizade inquebrável.

E no dia 22 de Março de 2012, no meio da greve geral, no 3º aniversário da tua filha, disseste-o com todas as palavras: é cancro.

Farias hoje 55 anos. De sonhos e mil vidas vividas. De mania de ter razão e às vezes ter mesmo. De histórias impossíveis de gigantes e monstros que se revelaram algumas verdade. E este último ano, foste sempre tu. A agonia de te ver de olhos no chão. O resistente, o rebelde, o homem que percorria o país de mota todos os anos, apanhava da mãe em miúdo, o pai das 4 filhas que nunca cresceu. O avô babado do seu neto homem.

O mesmo a quem negaram tratamentos de radioterapia porque era paliativa.
Não sabiam com quem se metiam.
O mesmo a quem receitavam comprimidos impossíveis de pagar.
Mas a família esteve sempre lá.
O mesmo a quem negaram transporte para a radioterapia. Mais uma vez, não sabiam com quem se metiam.
O mesmo que não cuidaram nunca de minimizar as dores. Mas tu não te queixavas.

Lembro-me do meu desespero, no dia 2 de Dezembro, ao entregar-te as prendas e tu não disseste mal de nenhuma. Gostaste de todas. O sinal de que estavas a desistir.
E eu percebo-te Pai. Mas não podia deixar.
Liguei para a fundação Champalimaud. A única máquina disponível em Portugal só era disponibilizada por 5 000 euros por tratamento. Era impossível irmos à Alemanha. Foi possível pedir à médica que tivesse cuidado com a prescrição dos medicamentos para que pudessem ser pagos. Foi possível ir vezes sem conta à Segurança Social que nunca te reconheceu a incapacidade, mas finalmente deferiu a pensão social, dois meses antes da tua morte.
Foi possível exigir do hospital a radioterapia face à ameaça de toda a comunicação social à porta.
Foi possível não pagar os milhares de euros de taxas moderadoras porque eu já tinha pedido a isenção, não tinhas quaisquer rendimentos.
Foi possível tratar de ti, a Joana disse todos os passos para te dar banho, mudar os lençóis, trocar a roupa (até a roupa te doía). Foi possível estar sempre do teu lado, a tua companheira estava há muito desempregada.
Foi possível arranjar algumas coisas que não deixassem a morte doer tanto.

Tiraste o teu curso e cumpriste o sonho aos 53. Mal andavas e foste fazer o julgamento.
Acompanhaste-me nos últimos debates que fiz…sobre Segurança Social.
Escrevemos juntos sobre direito do trabalho.
Há dois anos, escolhemos juntos as músicas da morte, no dobrar do ano. Porque os sinos tocavam por nós.
A minha revolta, Pai, são as dores que passaste. A humilhação por quem passa quem não tem dinheiro. A privação de tratamentos. A privação dos alimentos. A privação do direito a reclamar. «Penso que se para passar isto não valia a pena morrer logo. A morte desta forma não é morte. É sacrifício», disseste-me.
Lembro-me que o meu Pai acreditava que podia tudo. E este governo esmagou-te o peito, a capacidade de acreditar, e quem sabe de querer.

Às 23h36 todos estávamos contigo. Como estivemos sempre. Ouvi o teu último respirar e a lágrima que percorreu a tua face esquerda. Eu sei Pai. Querias ficar aqui mais tempo. Cumprir a tua vida. Os teus sonhos. Lutar. Ficamos aqui nós, dando corpo ao tanto que sonhaste.

Hoje farias 55 anos.
Ainda que os não fizesses, merecias, era-te devida, uma morte melhor. Uma morte sem desigualdades. Sem dores desnecessárias. Sem o sofrimento atroz que só sente quem vê negada a assistência por falta de dinheiro. Esta raiva que em mim cresce é esta, Pai. Não é a saudade. É a injustiça pela mão humana. Mataram-te os sonhos e o sorriso mesmo antes de morreres. Privaram-te da vontade. É isto que fazem. É isto que nunca lhes perdoarei. É contra isto que luto.
Pela tua vida e pelo direito que te roubaram de morrer, com dignidade e em paz. E tal como o amor foi uma constante que nos trouxe a todos em torno de ti, será esse amor pela humanidade, essa fraternidade que um dia Pai, talvez seja a Mafalda a assistir no transformar deste mundo.

Hoje fazes 55 anos. E como sempre, o melhor abraço do mundo é o teu.