Isto não é um país

Nacional

A realidade política dos tempos hodiernos lembra ser retirada das páginas de uma novela distópica, surreal, mediocremente escrita e de categoria inferior, mas perturbadora que baste para se querer saber o que vai acontecer no seu final.

A narrativa actual é a de uma classe dominante embrutecida num país que parece não saber encontrar-se, que abandonou o pensamento crítico e científico, que se expressa formalmente de uma forma infantilizada e estupidificada, que rejubila pateticamente na sua indigente servidão e aplaude enfaticamente um conjunto de frases pobremente articuladas aos urros. Vendemos a alma e a pátria, somos senhores de destino nenhum, escravos absolutos de determinações alheias e em degradantes reverências a esses tiranos transatlânticos e europeístas chamamos de amigos, aliados, parceiros, mesmo perante o abismo da guerra, do genocídio e da miséria, e só aos povos que se querem livres os olhamos como infestos. Como tolos esperançamos dobrados a uma vida melhor, enquanto os nossos pretensos donos nos cumprimentam com uma saudação fascista.

Decidimos por cá que a verdade é uma coisa qualquer, uma distante e optimística teoria, a histeria é a prática e a matemática é filosofia, as percepções são a nova ciência e o abstracto é a geometria que baliza a ideologia. Os proscritos edificaram novas quadrilhas à direita, tão mais deputáveis são quanto mais longa seja a folha de cadastro e o ângulo do braço ao chão se adequar a velhos tempos, e os que ainda não o são piscam-lhe o olho das salas palacianas, arruinando o estado social, derribando pedra por pedra cada uma das conquistas da revolução que sonhou um dia que isto poderia ser um país.

Embusteiros e engroladores tomaram as cadeiras ministeriais, a mentira é prato do dia e a desfaçatez prata da casa, o imutável rigor dos números é plástico à justa medida dos interesses que revestem a mensagem, tomam-nos por parvos e os seus microfones estipendiados fazem-nos efectivamente, e tudo é maleável na mão da direita portuguesa. Nesta sanha destrutiva não há assunto sem nó: os encapotados objectivos de uma reforma fiscal que promoveu um aliviado produto contributivo em proveito de quem mais ganha, a propaganda fraudulenta sobre as propostas para a habitação que agravará a especulação e o negócio imobiliário que brota de uma legislação que ainda não é; a gestão danosa, porém intencional, da saúde pública, cada vez mais subfinanciada e de administração propositadamente deficiente, propalando as negociatas com o sector privado e adivinhando-se o desmantelamento do serviço público; a desadequação da governação da educação pública, ora patranhando a quantidade de alunos sem professor, ora diabolizando a classe docente e o seu movimento sindical pelo insucesso da resposta proposta às suas exigências; do desbaratamento do património público, numa recuperada campanha de privatização, um lodaçal de corrupção doloso para o país; o autoritarismo interno da representação política dos negócios estrangeiros ou a subserviência de um cão-de-fila a nível externo, repudiando processos democráticos se virados à esquerda, louvando genocidas e guerras fratricidas; o discorrer de uma comunicação populista e barata, apelando à construção de um estado policial e com a idealização de um (ou uns) inimigo comum que distraia da evidente guerra de classes em curso. Conduzem-se pelas percepções que os próprios constroem e as evidências valem um redondo nada.

Se da via social-democrata se fez um cadáver, ao seu lado sepultaram o socialismo de gaveta e colarinho branco. Um autodenominado centro-esquerda que se ajoelha em todo momento, e em todos os patamares do poder, das autarquias à gestão central, junto do autoproclamado centro-direita, aos pés dos donos de ambos, o capital. Digladiam-se por um lugar-comum, em desespero tentando manifestar por retórica histérica que são desiguais, procurando à superfície as golfadas de poder que alimenta o excitamento da sua existência, para que quando espremido e à distância certa não se descortinarem diferenças de fundo. Aprovam orçamentos para lá e contas para cá, mantenham-se por aí enquanto nos reagrupamos por aqui, parecem declarar, dos seus irmanados alcaides não se vislumbram diferenças, o lixo amontoado pelas ruas na sua gestão autárquica tem um perfumado olor francamente melhor do que as incessantes dissertações, leoninos discursos ou monetizadas exposições, e se das sensações das sondagens não cresce uma certeza de lá chegar, aproximam-se da percepção fascizante do mundo e fazem capa de jornal dizendo que no fim de contas a imigração é um problema, adaptem-se à cultura e ao modo de vida quem para cá venha trabalhar, que esta gente não vai abdicar uma unha na sua disposição classista. Da ideologia sim, para que raio se quererá uma espinha dorsal, a verticalidade é coisa que não importa, melhor importar a verborreia que melhor parece angariar as hordas cegadas de ódio e colar um arquitectado rótulo de profundos humanistas para dar bolos aos tolos que sobram. Tudo foi descartado em nome de um bem maior, só o seu é certo; turcos, é nome antigo dessa ala, de uma ala que se propôs recuperar a esquerda de uma esquerda que não era mais, turcos, parecem agora ser, por aversão e repulsa, todo o campo de todos que juram e rejuram ser os mais profundos dos democratas.

Se da via social-democrata se fez um cadáver, ao seu lado sepultaram o socialismo de gaveta e colarinho branco, e numa encarochada reza o liberalismo tornou-se o mote de toda esta gente, uma santa de altar, mercantilizando tudo e todos. E de onde se esperaria ver brotar a esperança, livre e em bloco, só se encontram profundas contradições, insuperáveis, propondo-se a salvar o capitalismo, regulá-lo, torná-lo humano, pior, humanista, querem transformar nada e coisa nenhuma servindo aos mesmos amos.

Das campanhas de dinamização sobrou apenas a memória, e a política não é mais assunto decente para ser instruído. A Constituição da República Portuguesa é um mero adorno decorativo, as correntes políticas e os sistemas económicos são filosofias aborrecidas, dispensáveis à compreensão do mundo, do seu funcionamento e do estabelecimento das correlações de força de produção e produtivas. A democracia é um voto na urna e há uma outra guardada só para a liberdade.

Olhem! Nada a temer, há mais candidatos que marés! Votem, a democracia é viva, não há que participar, não há que saber, não há que aprender, não há que manifestar, mas na tentação, sobretudo, não se organizem. Não pensem, não falem. Tudo é Rússia, de Lisboa a Vladivostok e a verdade não é mais. Não falem, não pensem, tudo é Rússia, nada é nato, nada é império, nada é capitalismo, nada é crise. Perante o desastre liberal, tudo é socialismo. A decadência do sistema capitalista é socialismo também, ora! Não pensem, não falem, e se tudo for pelos ares, hoje mesmo como antes, têm o fascismo, seu eterno fiel-da-balança, para os preservar. Preferirão arder o mundo e todas as terras desta terra do que ver morrer o capitalismo.

E se dizem que a culpa disto tudo não é deles sobra-lhes a magnânima dádiva de não a deixar morrer sozinha, a culpa é da cor, da etnia, da origem ou do sexo, da orientação sexual, da condição social, do berço, é do soldo do campesino, do proleta ou do operário, da preguiça do explorado, do rendimento dado ao pobre miserável e abandonado, ou da organização ou da greve que os pariu a todos, é de todos os que tentam de picareta alargar as travessas para que passemos todos, mas não, nunca, deles.

E, tudo isto, não é um irado desabafo, nem um é o país que temos, nem uma sucessão de outros tantos bordões lamuriados, é, antes, a partilha do sossego de morar num colectivo onde habita a decência, e desde este pântano onde vivemos todos, onde descubro que é aqui, no movimento comunista, que estão depositadas as únicas esperanças para a construção de um mundo melhor.

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