Lisboíte aguda

Nacional

“Vê-se que não é de Lisboa”. Podia ser um comentário de café. Podia ser uma boca parva que se ouve na rua. Podia ser uma afirmação sobranceira de um lisboeta a propósito daquilo a que alguns gostam de chamar província. Mas não. Foi mesmo o argumento político do Vereador Duarte Cordeiro enquanto interrompia fervorosamente a intervenção do PCP na Assembleia Municipal de Lisboa no debate anual sobre o Estado da Cidade de Lisboa.

Falava-se sobre a ausência de estratégia para o património e para a cultura, ironizando que o evento de abertura do Capitólio fosse, não um evento municipal mas um evento privado da Vodafone, a 45-50 euros o bilhete (já à imagem da corrida Corte Inglés, do Continente não sei quê, da NOS não sei que mais, enfim, os mega eventos que fecham a cidade para dar lugar a eventos patrocinados por grandes grupos económicos com zero contrapartidas para os cidadãos e para o município), do estado em que está o Restaurante Panorâmico de Monsanto, o Pavilhão Carlos Lopes e, cometendo (eu) um lapso, afirmei que já nem há cinemas municipais em Lisboa. Falha minha que não mencionei o S. Jorge, mas não passou disso mesmo, um lapso. Que teve como resposta um «vê-se mesmo que não é de Lisboa».

No momento achei que foi apenas uma tirada infeliz. Infeliz porque o próprio presidente da Câmara Municipal de Lisboa não é de Lisboa. Como não é a Vereadora da Habitação. Mas isso não tem interesse nenhum. Naturalmente, ironizei. Mas a afirmação do senhor Vereador Duarte Cordeiro é perigosa, elitista, diria quase xenófoba. Perfeitamente, essa sim, alienada da cidade pela qual está eleito, sempre tão preocupado com o visit Lisbon e as web summits que está, que até quase parece dar a entender que só se quer em Lisboa o estrangeiro endinheirado mas não o trabalhador que se vê que não é de Lisboa, mas infelizmente vive em Lisboa, trabalha em Lisboa e, caramba, está eleito em Lisboa! Que maçada.

E a coisa não seria preocupante se o Executivo da cidade de Lisboa eleito pelo PS não mostrasse tanto desconhecimento da cidade de Lisboa. Medina apelidou-a de «fábrica de talentos», uma cidade num momento extraordinário, de grande competitividade e oportunidade, uma cidade que atravessa dos melhores momentos de sempre. E foi preciso apenas acesso à internet e 5 minutos para contrariar quase 20 minutos de auto-bajulação:

No entanto, entre 1989 e 2009, a taxa de pobreza na região de Lisboa subiu cerca de 80%, o que poderá ser explicado pela emergência de novas formas de pobreza, particularmente associadas às grandes concentrações urbanas e ao desemprego. O estudo publicado em 2012 pode ser lido aqui.

230 trabalhadores despedidos no 2º semestre 2016 no concelho de Lisboa e incluídos em processos de despedimentos colectivos. 48% eram trabalhadores de empresas de pequena dimensão.

49,7% dos desempregados de longa duração entre os 35-54 anos valor relativo ao 2º trimestre de 2016 e referente ao número de inscritos nos centros de emprego de Lisboa. (Dados do Observatório da Luta contra a Pobreza na Cidade de Lisboa)

De acordo com dados do Instituto da Segurança Social, entre 2006 e 2012, o número de famílias beneficiárias do Rendimento Social de Inserção (RSI) no distrito de Lisboa quase triplicou, passando de 13 mil para 31 mil.

Sobre isto, Fernando Medina responde que os dados não têm respaldo na realidade. (????) E diz-se espantado, quando questionado directamente sobre o motivo pelo qual não se dirigiu aos trabalhadores da hotelaria e turismo que se manifestavam por melhores salários e mais direitos quando foi inaugurar a convenção de turismo mas se limitou a receber aplausos dos empresários. Espantado porque acha que não é de esquerda não defender os empresários. Porque acha que não é de esquerda defender a web summit. Porque acha que não é de esquerda respaldar as políticas da Câmara Municipal que têm levado a cidade de Lisboa a um autêntico estado de sítio.

Não, não é preciso ser-se de Lisboa. Infelizmente é preciso ir viver para Lisboa ou trabalhar para Lisboa para conseguir trabalhar na área que se gosta (ou trabalhar de todo, em alguns casos). Mas é verdade que, não sendo de Lisboa, também se torna mais difícil (cada vez mais) poder permanecer aqui. Porque por mais pedras que lancem e anúncios que façam, as rendas continuam a subir (com uma ajuda preciosa na especulação imobiliária por parte da Câmara), os preços nos cafés, restaurantes e cinemas continuam a subir (sim, só há um cinema municipal na capital do país), os museus e teatros estão praticamente todos privatizados, a rede de transportes não funciona, os salários não acompanham o aumento do custo de vida da cidade.

Esta febre de Lisboa Valley, vendida como uma cidade moderna e atractiva, só existe na cabeça de uns quantos. Não gera emprego, não gera qualidade de vida, não gera bem estar. E começa a gerar essa sobranceria desgraçada que fica muito mal a um representante eleito mas que revela muito bem a política classista a que está votada a cidade e o município.

Vê-se para quem é Lisboa. Para este executivo do PS, Lisboa não é certamente para a classe trabalhadora.