Os putos brancos ricos tinham medo dos putos brancos pobres. Os putos brancos pobres tinham medo dos putos pretos. Que invariavelmente eram pobres. Já os putos pretos só tinham medo da polícia. Que por sua vez tinha medo dos ciganos, invariavelmente mais pobres que os brancos pobres. E os ciganos, que não tinham medo de ninguém e se riam da morte, da polícia e da prisão, tremiam de medo do China, que era o gajo mais fodido do Pendão.
Ninguém se lembra de que turma era o China. Em que ano andava ou que notas tinha. Porque o China, que estava na vida como na escolaridade obrigatória, vinha aos pontapés, a cair por aí abaixo «Deixe aprender os que querem aprender!», cumprindo a única lei que conhecia: a lei da gravidade da miséria. «Che, dread, gira um euro, deixa só ver esse móvel», «Queres que meta um furo na barriga?» E tu giravas, deixavas ver, com permissão teórica, porque sabias que o China sabia bem aquilo que tu sabias: o que um pobre quer saber de um rico é sempre uma pergunta retórica.
Olha, tens aqui o manual de ética para a pobreza em Portugal: cumpre as regras da pobreza, não compres mais que esparguete e arroz e latas de atum, respeita os ricos
Mas deixa estar, que quando a bófia o apanhar com a boca na botija… a roubar o que não é dele nem nunca foi dele, nem poderia ser dele, como nunca foi dos pais dele, nem nunca podia ter sido de ninguém da família dele… Aí há-de pagá-las bem caras, «Não lhe ligues, Francisco, daqui a uns anos ris-te tu dele». Mas na altura ninguém se ria. «Queres que te meta um furo na barriga?» Podiam bater-lhe ou prendê-lo ilegalmente, cuspir-lhe ou retirá-lo à mãe, podiam espancá-lo legalmente nas esquadras da polícia ou sentá-lo à frente de um imberbe soberboso, engravatado (que no entanto só em casa se rirá com os erros do CV desformatado, indiferenciado), podiam trazer batalhões de assistentes sociais cheios de ego ou boas intenções e podiam vir tribunais de menores para o habituar aos outros maiores
«O Nelson precisa de adquirir regras básicas, estrutura e disciplina», que sabendo tanto nunca compreendiam nada porque, afinal, «julgar é não compreender», podiam metê-lo na choça ou num curso obrigatório do IEFP que o fizesse ter saudades da choça ou rebentar-lhe os dentes à porrada ou fingir que não o vemos quando passa na rua, ou matá-lo de pancada e fazê-lo suar sangue, de tanto explorá-lo, podiam bater-lhe muito para ver se ele aprendia «Deixe aprender os querem aprender». Podiam tudo, mas não podem magoá-lo.
E tu, que estás a ler esta merda, com esse sorrisinho condescendente enquanto pensas: «Que determinismo tão retro-realista, que lumpen tão Germinal, que comunista tão anti-social. Não fosse bandido e tivesse estudado… Não interessa, eu tenho um vizinho que também era pobre e sabes onde é que ele chegou? Pois que seja mais difícil, é possível ou não é possível? Que fosse só um por cento de hipóteses! Sabes o que é que eu faria com o meu único um por cento? Apostava tudo nesse um por cento, sabendo que se falhasse me fodia! E que por isso quase de certeza que me ia foder sempre, mas não ia querer ténis, nem bolos, nem telemóveis nem as merdas que os outros putos têm todos!» «Sabes que já apanhei tempo por roubar bolos? A minha liberdade vale um bolo, compreendes o que isto quer dizer?», isto diria o China, não tu, porque tu empreendias tudo o que tens nesse solitário um por cento de hipóteses.
Mas olha lá, tu apostavas a tua casa, o teu carro, o teu trabalho, nesse um por cento? «Não apostava, mas eu tenho coisas a perder! Já tu, que não tens nada, só essa cozinha de bancadas em contraplacado forrado a plástico a imitar mármore; só esse colchão velho, em que morreu o teu tio e em que dormes tu agora; só esses móveis velhos de contraplacado plastificado a imitar madeira; só esse armário onde guardas o esparguete e o arroz e o atum enlatado. Por isso presta atenção que sou que te vou ensinar a ser pobre, percebes? Olha, tens aqui o manual de ética para a pobreza em Portugal: cumpre as regras da pobreza, não compres mais que esparguete e arroz e latas de atum, respeita os ricos e, sobretudo, lembra-te que o pouco que tens para nós vale tão pouco que te dizemos, assim, à cara podre, que não tens nada a perder na vida toda, que é como te dizia a professora “Deixe aprende os que querem”, que é como diz o Ronaldo, que se foda».
O China não acreditou com muita força que tudo era possível, não seguiu os sonhos até se concretizarem, não conseguiu ser um dos «muito bons» a quem os bancos prometem que «o resto vem por si», não era empreendedor. E como não deixou de comer, de ter ténis e de ver televisão, nunca descobriu se esse um por cento de probabilidades se havia de cumprir ou não. Há poucos anos foi preso outra vez, condenado por não ter pago o que devia a um mecânico. A sociedade pede-lhe que pague o que deve ao Mecânico e, não podendo pagar, pronto, que não vá ao mecânico e fique sem carro, mesmo que isso implique não poder ir trabalhar, pode sempre ir a pé, mesmo que sejam 20 quilómetros , ou não podendo, que, olhe, procure outro trabalho «O Nelson precisa de adquirir regras básicas, estrutura e disciplina».
Mas o que é que achas que vai acontecer, quando um dia o China entender a razão de tudo isto? Quando perceber que tanta pancada, tanta dor, tantos anos atirados fora, foram na verdade uma condenação, a primeira sentença de muitas que lhe foram lidas, esta ainda nem parido fora, condenando-o a ser um bebé pobre, uma criança pobre, um jovem pobre, depois só um pobre e finalmente, com alguma sorte, um velho pobre? Afinal, todos os homens nascem iguais em deveres, as crianças é que já nascem diferentes em direitos. Então, não te cuides… que se um dia compreende isto, o China, que era o gajo mais fodido do Pendão, vai dirigir a sua força grande, as suas mãos fodidas, rebentadas nas obras e na luta, contra outras pessoas. E nesse dia, mesmo que já velho, irreparavelmente partido o coração, há-de lembrar-se daquela força formidável, daquela violência temível, para acabar de uma vez com tudo isto, com quem disto tudo lucra e com aquilo tudo que és: patrão.