“Isto é para aprenderes a não escrever como escreves” — disseram-lhe dois homens enquanto a espancavam, numa rua estreita, no Arco do Cego. Foi, em tempos sombrios, o preço a pagar pela sua ousadia, pela recusa de um “lirismo comedido”, resignado, conformista. Hoje, especialmente hoje, podemos olhar o triste episódio e pensar que Maria Teresa Horta, co-autora das emblemáticas “Novas Cartas Portuguesas”, estaria a fazer alguma coisa bem. Essa coisa que, quando ainda em construção, era já uma ameaça ao fascismo beato que oprimiu o nosso povo durante 48 anos e à sua natureza castradora da expressão poética. O legado que nos deixa é a materialização da sua resistência impudica contra a repressão fascista, em primeiro lugar, e contra a dominação patriarcal, essa inaugural camada tão sua com que viria a engrandecer a poesia portuguesa.
Hélène Cixous teorizou a urgência da reivindicação de um espaço para a mulher, na literatura; a urgência de o corpo feminino se escrever e descrever a si próprio, após ter passado séculos a ser objecto de, ora idealização, ora desprezo, por autores homens que perpetuavam a sua condição subalterna, tratando-a como um outro. Faltava inscrever, na poesia, a verdade, o não dito, o tabu, desbravar caminhos interditos ao segundo sexo, descrever a verdadeira experiência das mulheres e a sua desmistificação. A literatura portuguesa encontra e encontrará, em Maria Teresa Horta, essa urgência e a sua concretização. Maria Teresa Horta escreveu o corpo da mulher descobrindo-se a si mesmo, as suas cicatrizes, o desejo feminino desconstruído, no modo imperativo e sem papas na língua, e, claro está, a mulher como sujeito político, agente de transformação. Não encontraremos, na última das Marias, a imagem da mulher como entidade abstracta, apolítica, mas a mulher que avança em direcção ao futuro. Maria Teresa Horta não canta a mulher que se contenta com a sua liberdade sexual ou demais liberdades individuais de bolso, mas a que, contra todas as evidências, se bate pela emancipação de todas, sem delírios pós-modernos. Não falamos apenas da “seara das pernas”, mas de um “punho erguido” que trespassa os limites da página. Maria Teresa Horta reivindicou palavras proibidas e um lugar no mundo, em plena ditadura.
“Minha Senhora de Mim” (1971), o seu nono livro de poesia, censurado e apreendido pela PIDE, marca um instante decisivo para a literatura portuguesa, pois esta passou a ter, verdadeiramente, rosto de mulher livre, transgressora em toda a linha, dona do seu corpo, senhora da palavra escrita e libertando-se dos papéis de género, numa época em que as mulheres tinham ainda de adoptar pseudónimos masculinos para serem consideradas pelos editores. Ao iniciar o poema homónimo com um verso do quinhentista Sá de Miranda, não falamos apenas de intertextualidade, mas da corajosa desconstrução das convenções impostas, na poesia e na vida. As máscaras começavam a cair. Mais ainda, Maria Teresa Horta resgata a estrutura das cantigas de amigo medievais, escritas por homens na pele de mulheres, julgando serem conhecedores das suas emoções e lamentos, e remetendo, tantas vezes, a voz feminina para a fragilidade, a submissão e a dependência. Através da transgressão, na forma e no conteúdo, a mulher impunha-se perante um mar de homens e conquistava, enfim, a sua voz na literatura. Não mais seria silenciada.
Agora, Maria Teresa Horta — que merecia bem mais do que quatro pequenos parágrafos — não é só a reconhecida poetisa que cartografou o corpo e o desejo femininos, desafiando a instituída moral cristã ou a activista pela igualdade entre homens e mulheres, mas porta-voz da denúncia do fosso entre classes, que se reflecte, não raras vezes, na desigualdade entre mulheres… e mulheres. Nem o seu erotismo é sem propósito, nem a sua causa largava da mão a mãe de todas as lutas. É do lado das que fazem a Terra girar, das que criam riqueza e das que saem à rua pelos seus direitos que Maria Teresa Horta sempre esteve, pela Liberdade com L maiúsculo. E por isso lhe ficaremos eternamente gratas.
Pequena Cantiga à Mulher (1967)
Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa
Anjos Mulheres — VI (1983)
As mulheres voam
como os anjos:
Com as suas asas feitas
de cristal de rocha da memória
Disponíveis
para voar
soltas…
Primeiro
lentamente: uma por uma
Depois,
iguais aos passaros
fundas…
Nadando,
juntas
Secreta: a rasar o
chão
a rasar a fenda
da lua
no menstruo:
por entre a fenda das pernas
Às vezes é o aço
que se prende
na luz
A dobrarmos o espaço?
Bruxas:
pomos asas em vassouras
de vento
E voamos
Como as asas
lhe cresciam nas coxas
diziam dela:
que era um anjo do mar
Rondo alto,
postas em nudez de ombros
e pernas
perseguindo,
pelos espaços,
lunares
da menstruação
e corpo desavindo
Não somos violência
mas o voo
quando nadamos
de costas pelo vento
até à foz do tempo
no oceano denso
da nossa própria voz
Sabemos distinguir
a dormir
os anjos das rosas voadoras
pelo tacto?
Somos os anjos
do destino
com a alma
pelo avesso
do útero
Voamos a lua
menstruadas
Os homens gritam:
– são as bruxas
As mulheres pensam:
– são os anjos
As crianças dizem:
– são as fadas
Fadas?
filigrana cintilante
de asas volteando
no fundo da vagina
Nadamos?
De costas,
no espaço deste século
Mudar o rumo
e as pernas mais ao
fundo
portas por trás
dobradas pelos rins
Abrindo o ar
com o corpo num só golpe
Soltas,
voando
até chegar ao fim
Dizem-nos:
que nos limitemos ao espaço
Mas nós voamos
também
debaixo de água
Nós somos os anjos
deste tempo
Astronautas,
voando na memória
nas galáxias do vento…
Temos um pacto
com aquilo que
voa
– as aves
da poesia
– os anjos
do sexo
– o orgasmo
dos sonhos
Não há nada
que a nossa voz não abra
Nós somos as bruxas da palavra