Na encruzilhada da paz

Internacional

Cerca de 19 dias foi quanto tardaram os cerca de sete mil guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP) a percorrer a pé, em veículos e embarcações os 8700 quilómetros que os separavam das 26 zonas de transição acordadas com o governo colombiano. Um formigueiro de mulheres e homens que abandonaram a selva profunda e desceram das montanhas para uma das mais difíceis batalhas da história da mais antiga e maior guerrilha da América Latina. Depois de 53 anos de conflito, as FARC estão decididas a entregar as armas e a construir ao lado da população uma Colômbia de paz e justiça social.

La Guajira, o inferno colombiano

A estrada que separa Valledupar de Fonseca, o município onde se encontra o acampamento das FARC de Pondores, é o espelho dos contrastes da região de La Guajira. Um dos passageiros que se atreve a entoar algumas das letras mais conhecidas de vallenato entre os solavancos da camioneta queixa-se do avançado estado de degradação do piso e não compreende para onde vai o dinheiro cobrado pelos portageiros numa das zonas mais pobres da Colômbia. Depois de sucessivos postos de controlo do exército, surge uma ciclovia e uma pista de jogging de intermináveis quilómetros num departamento nas mãos da corrupção. Nos últimos dez anos, nenhum governador chegou ao fim do mandato e três encontram-se presos por desvio de dinheiro e favorecimento.

Nesta região de profundas contradições, dados mais recentes indicam que mais de metade da população vive em pobreza extrema e um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) calcula em 4770 o número de crianças que morreram nos últimos oito anos devido à falta de comida e água. As populações mais próximas da fronteira com a Venezuela vivem sobretudo do contrabando que sendo abundante não chega para todos. É o inferno de uma região que para além do clima tórrido viveu durante anos o drama do conflito e onde persiste o desemprego, o roubo de gado, o elevado número de indígenas que dependem do Estado e o fraco retorno de recursos da extracção de carvão.

A paz sob ameaça

Foi neste barril de pólvora que se movimentaram durante anos os guerrilheiros das FARC que agora se concentram ao lado da aldeia de Conejo, município de Fonseca, e que pertencem à 59ª Frente Martin Caballero, integrada no Bloco Caribe. É aqui que estão concentrados num processo que a ser concluído, conforme os Acordos de Paz assinados em Havana com o governo, passará pela entrega faseada de armas à ONU, pela amnistia dos 4 mil presos políticos e pela criação de um partido que permita às FARC participar legalmente na vida política da Colômbia.

Debaixo da folhagem e dos grossos troncos, levanta-se o acampamento de madeira entre camas e mesas de tábuas e paus como faziam nas encostas das montanhas da Serranía del Perijá. Jaime é um dos 300 habitantes desta cidade improvisada. Repetiu os passos de milhares de colombianos que para fugir à perseguição paramilitar se viram forçados a trocar a actividade política legal pela clandestinidade nas filas guerrilheiras. Hoje, tem 26 anos, e já passaram alguns anos desde que teve de abandonar a sua cidade e a militância estudantil. De kalashnikov ao ombro, o jovem guerrilheiro descreve a Sermos Galiza a dura travessia para aqui chegar: «Foram dias muito complicados e quando chegámos nada do que o governo havia prometido estava construído. Nada. Nem os dormitórios, nem o posto médico, nem as casas-de-banho, nem sequer a água canalizada». Então conta como os guerrilheiros se juntaram aos operários e decidiram «suar pela paz» sem estarem obrigados a isso e demonstrando o seu compromisso com o fim do conflito de mais de meio século.

Durante semanas, os sucessivos atrasos na implementação dos acordos de paz foram alimentando a tensão e o temor de que este processo de paz tenha o mesmo fim de todos os anteriores. Jaime abre o tablet e mostra uma notícia com alguns dias em que o enviado-especial da ONU Jean Arnault pede ao governo de Juan Manuel Santos que recalendarize as três fases de entrega de armas. A poucos dias do primeiro prazo acordado, nenhum dos acampamentos tem sequer os contentores para que as FARC possam desactivar uma terceira parte do seu arsenal militar e entrega-lo à ONU como consta do que foi assinado em Havana pelas duas partes.

À escuta, Yesid junta-se à conversa e informa-nos que centenas de presos das FARC acabam de decidir encetar uma greve de fome para pressionar o governo a aplicar a amnistia acordada e que já havia sido regulamentada no congresso dos deputados. Dias depois, a polícia colombiana detinha dois guerrilheiros que se dirigiam precisamente para este acampamento.

O caminho para a paz gera expectativas na maioria dos combatentes que por vezes se atrevem a sonhar com o que gostariam de fazer. Para Yesid que gostava de estudar fotografia e vídeo representou uma tragédia. Na travessia para chegar até aqui muitos guerrilheiros adoeceram e a sua companheira acabou por falecer, um acontecimento denunciado pelas FARC na imprensa acusando o governo e a ONU de não assegurarem a assistência médica. Yesid mostra a fotografia de Damaris Lee e conta com raiva: «Teve de ser levada por guerrilheiros à margem dos protocolos para um hospital e acabou por morrer».

Apesar do cessar-fogo bilateral, a morte continuar a manchar de sangue as cidades e as aldeias da Colômbia. Desde que os grandes grupos económicos começaram a financiar o paramilitarismo, em colaboração com os sucessivos governos, que a barbárie se espalhou como um cancro e continua a ser a maior ameaça ao processo de paz. Agora que as FARC se concentram em zonas de transição, os grupos paramilitares invadiram as regiões de influência da guerrilha para impor o seu reinado de terror. Neste momento, segundo a ONU, a Colômbia é o segundo país com mais deslocados internos. Cerca de 5,3 milhões de mulheres e homens foram expulsos das suas terras pelo conflito armado.

Entre as filas guerrilheiras existe o receio de que a história se repita. Em 1985, quando as FARC encetaram um processo de paz com o governo de Belisario Betancur e criaram o partido União Patriótica, não imaginavam que numa década seriam assassinados cerca de cinco mil dos seus membros, dos quais dois candidatos presidenciais, oito congressistas, 13 deputados, 70 concelleiros e 11 alcaldes. A estes dados arrepiantes há que acrescentar a presença da Colômbia durante anos seguidos na frente da lista dos países em que mais sindicalistas e jornalistas são assassinados.

É assim que ‘Gabo’, de 22 anos, sustenta o contexto histórico em que o seu pai e muitos milhares entraram nas FARC nos anos 80 e 90. Posteriormente, foi a sua vez e a do seu irmão gémeo aos 12 anos quando não havia mais segurança do que na guerrilha. «Em Maio, em princípio, vamos fundar o nosso partido e esperamos que as razões que levaram tanta gente a empunhar armas deixem de existir», explica. E conta que a sua e a do seu irmão é a história de muitos combatentes e que não sabem da sua família há mais de dez anos. Ou seja, desde que entrou na organização. No dia a seguir a esta entrevista a Sermos Galiza, ‘Gabo’ com um sorriso do tamanho do mundo conta que a mãe apareceu no acampamento de surpresa com uma irmã que não sabia que tinha.

A rotina à espera da paz

A roupa exposta nos estendais ilustra o carácter político e desportivo dos seus donos. Che Guevara e Manuel Marulanda, fundador das FARC, dominam a estética guerrilheira. Jaime que chega do turno de guarda com a sua inseparável metralhadora e uma t-shirt de Hi Chi Minh assobiando A Internacional quer deixar claro que é comunista: «Luto por uma sociedade sem exploradores nem explorados e com ou sem armas esse é o objectivo de toda esta gente».

De facto, os tempos da pólvora e da metralha estão apartados mas todas as madrugadas, às 4.50, estas mulheres e homens que lutam pela paz e pela justiça social são acordados por um guerrilheiro do turno de guarda percorre as tendas e as camas improvisadas dos seus camaradas imitando um pássaro como durante a guerra. Depois do asseio num enorme tanque onde também se lava a roupa, os combatentes fazem a formação e um comandante passa a revista às tropas. Às 5.30, chega a hora do café da manhã antes do momento dedicado ao estudo e às notícias do dia.

A partir daí o acampamento é uma cidade viva de gente que realiza todo o tipo de tarefas. Entre os combatentes, o número de mulheres e indígenas é bastante elevado e não há qualquer distinção na atribuição de responsabilidades. À entrada do acampamento há uma comissão de recepção para que a população e as organizações sociais e políticas possam contactar os guerrilheiros. Diariamente chegam dezenas de pessoas para conhecer as propostas das FARC, para expressar as suas preocupações ou para denunciar algo.

Enquanto os assassinatos de dirigentes sindicais, políticos e indígenas cresce assustadoramente às mãos dos grupos paramilitares, guerrilheiros como Jaime, Yesid e ‘Gabo’ entendem que a participação da população é essencial para a efectivação dos direitos consagrados nas negociações e que a luta social é determinante para que a paz não seja, uma vez mais, afogada em sangue.

[reportagem publicada no jornal Sermos Galiza]