Nas ruas sobra o espaço que não cabe no orçamento

Nacional

Há poucos dias, conversava com um amigo sobre o Orçamento do Estado proposto pelo PS e aprovado, na generalidade, com os votos do PEV, do BE e do PCP.

Sentados na Praça do Município lisboeta e separados pelo já tradicional tabuleiro de xadrez, o debate discorria previsivelmente entre as duas balizas do governo de Costa. Por um lado, a travagem do rumo renitido por PSD e CDS-PP, com importantes, embora tímidos, sinais de inversão de marcha.

É inegável, neste campo, o impacto social de algumas medidas já aprovadas como o fim dos cortes salariais para os trabalhadores da administração pública, a redução da sobretaxa de IRS, a restituição de 4 feriados roubados, a redução da taxa máxima de IMI, a redução das taxas moderadoras, o início da gratuitidade progressiva dos manuais escolares, o congelamento da propina máxima, a redução do IVA na restauração, o novo apoio a desempregados de longa duração, a revisão da base de cálculo das contribuições dos trabalhadores independentes ou as medidas de Combate à precariedade na Administração Pública e no Sector Empresarial do Estado.

Por outro lado, quem pode ignorar a incapacidade do PS de debelar as causas estruturais da crise económica que condena o nosso povo à miséria? Das privatizações da EGF à CP Carga passando pela política de nacionalização dos prejuízos dos banqueiros, o PS continua atavicamente amarrado à sua história e à sua classe.

O resultado, concordávamos os dois, é perigosamente exíguo: o salário mínimo de miséria, a falta de funcionários públicos, as 40 horas de trabalho, a submissão à dívida usurária e aos caprichos da EU… tudo neste governo é parco, insuficiente e, em demasiados casos, avoengo e fétido de Passos.

Eis então o busílis: qual é a utilidade de uma pequena concessão que não resolve o problema fundamental?

Reformismo, esquerdismo e coerência

O reformista argumentaria qualquer coisa em mal menor, asseverando que o mundo só avança de mal para pior. O reformista começaria o discurso com «É assim,» e lembrar-nos-ia da nossa fraqueza para sugerir, de seguida, voltar a receitas caducas e esgotadas para mais e novas cedências falidas como quem responde a mensagens de spam ou investe num vídeo-clube em Vila Nova de Gaia ou num Centro de Formação de Formadores de Empreendedores.

Já o esquerdista recusaria todo e qualquer compromisso e, batendo no peito, reafirmaria que como é contra a exploração não pode defender aumentos salariais. Como um rato que mexe mas não clica ou uns óculos muito bonitos mas sem graduação, o esquerdista diria que prefere o Passos no poder à manifesta insuficiência do Costa. Pouco tempo depois, estaria a dizer que com o Salazar é que era bom e a augurar cenários mais negros que o coração de um patrão de uma empresa de trabalho temporário.

Já o revolucionário, diria que as conquistas e as reformas só valem na medida em que sirvam para alavancar novas conquistas, demonstrando aos trabalhadores que é possível avançar e acentuando por esta via as contradições do capitalismo. Neste sentido, as reformas são úteis sempre que nos deixarem mais próximos da revolução.

Acabámos por concordar os dois que o Governo é só do PS mas que a possibilidade de avançar não depende dele porque o PS e a vontade do PS dependem só dos interesses de grandes empresários e banqueiros. O proveito deste governo para quem trabalha só pode estar dependente da luta de quem trabalha e da sua capacidade de exigir e conquistar nos locais de trabalho e nas ruas o que só as ruas podem dar. É pela luta que vamos lá.